A oligarquia

O mais relevante do episódio parece-me ser o facto confirmado de que as lideranças do PSD (Passos incluído) e do PS terem dado o seu acordo à proposta.

Dois dos veteranos do centrão, Couto dos Santos e José Lello (ambos exministros da Juventude e Desportos, lugar por onde têm passado várias gerações dos mais genuínos boys do poder – quem não sabe de nada em especial deve saber de certeza de jovens e desporto!), propuseram que se retomasse o pagamento das subvenções vitalícias aos titulares de cargos políticos, regalia aprovada pelo governo do Bloco Central de Mário Soares (1983-85), entretanto suspensa.

A esquerda parlamentar (a que é inútil, não é o que se tem dito?, o Bloco, primeiro, depois o PCP, que contra isto votou sempre) denunciou de tal forma a imoralidade e a desfaçatez do gesto que Couto dos Santos, o mais típico dos Homo Cavacus dos anos 80, lá retirou a proposta em nome do “bom senso”, deixando sozinha a deputada Isabel Moreira, das raras que no PS tem sido capaz de assumir algumas atitudes corajosas, a sustentar alguns dos mais equívocos e ingénuos princípios de definição da natureza da lei e da norma num Estado de Direito. “Não há regalias num Estado de Direito democrático!”, garantiu ela (TVI24, 20.11.2014) diante de Mariana Mortágua (BE) – o que um mínimo de análise histórica e jurídica torna absolutamente inacreditável de se ouvir... Gente a quem, vinda dos partidos do poder, uma vez terminadas as suas funções de representação política, se abrem portas acessíveis a poucos mais, que nunca fizeram descontos específicos para semelhante subvenção, tem direito a estas subvenções simplesmente porque foram aprovadas por procedimentos formais de um Estado de Direito? Um Estado de Direito não discrimina, não comete injustiças, não favorece?

O mais relevante do episódio parece-me ser o facto confirmado de que as lideranças do PSD (Passos incluído) e do PS terem dado o seu acordo à proposta, que, apesar de agora retirada, foi aprovada na comissão parlamentar de Orçamento pelos deputados dos dois partidos do rotativismo. Quem quiser juntar detalhes sobre com quem o PS de António Costa (e Lello é um socratista tão estridente que já era costista antes de Costa!) tem mais afinidades para se entender quando regressar ao governo, este é um dos mais evidentes e sumarentos!

É verdade que semelhante dualidade de critérios só vem acrescentar um pouco mais de indignação à desesperança na vida dos 2,5 milhões de portugueses que vivem abaixo do limiar de pobreza, do terço de crianças que vive em pobreza ou em risco de nela cair, do milhão de desempregados e de sub-empregados que são todos os dias acusados de se acomodarem à prestação, ao subsídio. Mas revela a conceção que do Contrato Social têm os dois partidos que controlam o Estado português – e que continuarão a controlar se o PS regressar ao poder sem que se lhe obrigue a mudar de rumo –, ao voltar à carga (e voltarão mais vezes) com o direito a uma retribuição extraordinária do sacrifício que julgam fazer ao representar os cidadãos, ao mesmo tempo que, uns e outros, os governos de Sócrates e de Passos, intimidaram e intimidam todos aqueles que têm direito a uma prestação social porque (esses sim!) para ela descontaram, ou porque, sem o terem feito suficientemente, vivem em carência severa e deviam poder dispor de apoios do Estado, em nome da comunidade que todos constituímos, para poder sobreviver condignamente.

Não saltaram eles todos os limites da decência intelectual e moral ao dizer que “andámos a viver acima das nossas possibilidades”? Não ouvimos nós o estranho Gaspar a chamar-nos “o melhor povo do mundo” por termos aguentado, melhor do que ele temera, estes anos de roubo legal, de privação imposta, de renúncia e abandono? Mal este século começou e Pina Moura, nas Finanças, soltou o monstro austeritário, alimentado depois pela “tanga” de Ferreira Leite e Bagão Félix. Chegado Sócrates ao poder, o monstro consagrou-se em tratado europeu e, entre PECs e troikas, lá foi “comendo tudo, e não deixando nada”, sobretudo quando Passos, Gaspar&Swaps-Albuquerque o transformaram em motor de uma verdadeira contrarrevolução económica e social que está a reduzir a pó a pouca democracia social que o 25 de Abril tinha começado a construir. O monstro tem afugentado para fora do país centenas de milhar de portugueses, antecipado a morte de muitos, e enfurecido e humilhado milhões de assalariados a quem Estado e privados disseram que não podiam continuar a pagar o que pagavam, que eles, afinal, tinham estudado mais do que era necessário, tinham filhos quando não deviam, que tinham de perceber que os chineses que nos obrigavam a reduzir custos...

Quantas vezes Passos e Cavaco nos explicaram, pelo Natal, que todos sabíamos que havia que fazer sacrifícios, que todos estávamos no mesmo barco? É que foi enquanto eles o diziam que as contas na Suíça multiplicaram o seu valor, que a Jerónimo Martins transferia a sua contabilidade para um apartado de correio na Holanda, e deixava de pagar os mesmos impostos que passaram a ser exigidos a todos os que cá ficámos, que Zeinal Bava desfazia a PT que um dia tinha sido de todos nós, e que dela saía indemnizado (e publicamente homenageado!), ou que os Espíritos Santos foram jogar ao casino da finança internacional para depois pedirem ajuda ao Estado, exclamando “O Moedas, o Moedas! Eu punha já o Moedas a funcionar!”. Quando Ricardo Salgado telefonou ao então secretário de Estado “a meio de um conselho superior da família” Espírito Santo, terá obtido, segundo uma gravação, a disponibilidade do atual comissário europeu para pedir ajuda ao presidente da CGD e ao ministro da Justiça luxemburguês (Sol, 17.10.2014). Porque nos espantamos, então, que o notário-mor do país se possa ter juntado com a secretária-geral de um ministério como o da Justiça para montar um esquema de enriquecimento à custa da norma que mais depuradamente decorre do culto do dinheiro? E que tenham pedido ajuda ao chefe da polícia dos imigrantes e das fronteiras, e aos serviços secretos, e que tenham achado que seriam bem acolhidos?

Chama-se a isto a oligarquia. Tem as suas contradições e, ainda, as suas limitações, como se vê. Mas não duvidemos que é onde agora estamos. Até ver.

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