Pouco menos do que uma lenda

É uma estrela rock à antiga, mas à dimensão da nossa era. Mergulhou na memória do seu passado, criança na década de 1980, e recriou-o distorcido pela passagem do tempo. No processo, inventou uma nova forma de canções. Pom Pom é o novo álbum de Ariel Pink.

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SASHA EISENMAN

E eis então Ariel Pink, que acaba de editar Pom Pom, um dos álbuns mais aguardados neste final de ano, a dizer o seguinte: "Com sorte, assistiremos à morte da música daqui a um ano. Esperemos que seja isso que aconteça." A morte da música? Não toda, corrige. “A música gravada. Já não faz sentido, porque as pessoas não querem saber." Mais tarde, enquanto abordamos a escandaleira on-line em se que tem visto envolvido nas últimas semanas (aparentes elogios à homofóbica Westboro Baptist Church; declarações sobre Madonna consideradas misóginas), Ariel Marcus Rosenberg, nascido em Los Angeles, ano 1978, dirá que o problema é um e um apenas: “As pessoas pensam que eu estou a gozar em 90 por cento do que digo, quando na verdade estou quase sempre a ser honesto. Não, não estou a gozar. Essa é a ironia em mim."

Pom Pom é o novo álbum do músico que pegou na história pop e transformou a memória que o bom gosto esqueceu (não só, mas numa escala considerável) em Santo Graal para respigadores de despojos do passado (e foi ver o soft-rock, as baterias sintéticas e os teclados foleiros dos anos 1980 ganharem credibilidade indie, o lo-fi a renascer enquanto género e afectação, e uma nova nomenclatura a brotar de estúdios caseiros: ainda nos lembramos da chillwave?). Estávamos em meados da década passada e Ariel Pink reeditara The Doldrums, obra caseira registada em 1999 e descrita como uma viagem imaginária pelo FM de Los Angeles no início dos anos 1980 – daí o ruído que parecia cobrir as canções de estática.

Ariel Pink, que como contado pelo própio compôs a primeira canção aos dez anos, quando ainda não sabia tocar qualquer instrumento mas vivia já obcecado com o rock, o seu imaginário e a sua estética, e foi descoberto 15 anos depois disso pelos Animal Collective, que o contrataram para a recém-criada Paw Tracks (que reeditaria The Doldrums), era então incompreendido pela maioria do público que lhe via os concertos na tangente entre a performance e a cacofonia. “O público apupa-me em todo o lado… Nem esconde o seu desprezo”, contava então. Uma minoria, porém, estava atenta e viu nele algo de inspirador. Subterraneamente, Ariel Pink era instigador de novas vagas no universo da música popular urbana. Assim continuou até 2010. Foi nesse ano que editou Before Today. Gravado com uma banda que reuniu e que baptizou de Haunted Graffiti, trouxe-o do underground à cristalina superfície do mundo da pop. Esse álbum magnífico, de som ainda enublado de poeira sónica e feito de memórias sabotadas da década de 1980 (de Michael Jackson a funk robótico e a hard-rock), mas recheado de canções de corpo inteiro, transformou-o numa estrela à escala das pequenas comunidades melómanas do nosso tempo. “É muito pouco provável que alguém consiga ser hoje uma estrela rock, mas é óptimo que não tenhamos de passar 20 anos na escola”, comentará Ariel Pink. “Tens de ter mais que um interesse passageiro e, se o mantiveres, eventualmente algo acontecerá." 

Amor-ódio

Misto de poster boy glam e figura excêntrica da LA de glamour e decadência, Ariel Pink tornou-se um músico inescapável do presente pop. Deixou de ouvir apupos nos concertos (tudo era agora adoração).

Em 2012 chegou Mature Themes, um álbum desequilibrado em que o talento para a síntese e a marca de água musical de Pink conviviam com uma indulgência desapontante. A aura, no entanto, manteve-se intocada. Dois anos depois, Pom Pom, disco em que enterrou os Haunted Graffiti e a que, ao contrário do habitual, devotou longos nove meses e todo o tempo do mundo, chegou quando a aura de herói independente e farol criativo do presente estava sob ameaça. Nos meses anteriores, contara num programa on-line, em tom de paródia confessional, uma história que envolvia uma saída à noite, ele e uma rapariga a borrifar-lhe os olhos com um spray Mace no final. Choveram acusações de misoginia pela Internet em artigos inflamados (os do dia).

Depois, numa entrevista a um jornal australiano, Ariel revelou que fora contactado pelo management de Madonna para, de acordo com o citado, revitalizar a carreira da cantora. Pelo meio, disparou que, a partir do primeiro álbum, a criatividade da dita “Rainha da pop” fora desaparecendo progressivamente mas que ele, com as suas canções, poderia ajudá-la – o management de Madonna desmentiu, ele queixou-se de ter sido mal citado e, entre uma coisa e outra, mais acusações de misoginia a choverem on-line. Enquanto tudo isto se desenrolava ao longo do mês passado, chegou outra entrevista, na qual declarava gostar da Westboro Baptist Church, um ajuntamento de conservadores homofóbicos americanos que fazem questão de se envergonhar inadvertidamente a cada manifestação. Resultado? “Ariel Pink é o homem mais detestado do indie-rock”, lia-se por todo o lado (na tal da Internet). A tentativa de defesa não correu bem. “E se eu me suicidasse e twitasse 'Obrigado, pessoal. Tinham razão'?... Foi assim que o Ruanda aconteceu”, começou a justificar-se à New Yorker, antes de concluir: “Todos são vítimas, menos os pequenos e simpáticos tipos brancos que só querem deixar as suas mães orgulhosas e tocar numas maminhas."

Note-se, ainda assim, que Ariel Pink não manifestara particular apreço pela Westboro Baptist Church. Defendera que ouvir a agremiação gritar na rua a intolerância que grita era uma recordação importante de que vivia num país onde existe liberdade de expressão. “Gosto de colocar questões, mas acho que não há respostas”, diz agora ao Ípsilon. “Não acredito no certo e no errado. O mundo é muito mais complexo e eu sou uma pessoa… tradicional." Tradicional? “Sou conservador e acho que devemos manter as coisas como eram em vez de pensar nas transformações maravilhosas que podemos fazer. A mudança acontece por si só, quer tentes fazê-la ou não. Assim sendo, é inútil tentar consegui-la. Mas faz parte do espírito inquieto do nosso tempo”, diz o conservador que canta Nude beach a go-go ou Sexual athletics

Um intruso no passado

É portanto neste contexto, o da parangona “o homem mais odiado do indie-rock”, que o encontramos. Mas o Ariel Pink que conversa com o Ípsilon não está preocupado com o contexto. “Não há nada de stressante em tudo isso”, diz descontraído. “Isso é só o Twitter a funcionar”, ri. E sim, levem-se mais ou menos seriamente as declarações, há muito de histeria internética na história do último ano de vida de Ariel Pink. Algo que não existe no álbum que agora editou, Pom Pom.

Nele ouvimos, uma vez mais, um músico no seu casulo. As suas canções vêm, de facto, de um lugar peculiar. “Todo o meu projecto de carreira tem sido agir como um intruso na visão do passado, do meu passado. Quando ouço música, tento apreciá-la como quando tinha cinco anos. Estou constantemente a pegar naquele miúdo de cinco anos de forma a não o esquecer. Se eu o esquecer, ele desaparecerá completamente. Porque já não está cá."

Pom Pom conta, entre muitos outros, com a colaboração de Jason Pierce, dos Spiritualized, ou do mítico músico e produtor Kim Fowley (produto acabado da LA de toda a energia criativa e de todos os excessos, figura de culto desde a década de 1960). Fowley deu a Ariel Pink títulos de canções e excertos de melodias a partir da cama de hospital onde luta com um cancro. “Nasceu ao fundo da minha rua, mas ele tem 75 anos e eu tenho 36. E ele é uma lenda e eu sou um pouco menos do que uma lenda."

O álbum, longo de 17 canções, é uma colecção de experiências pop com assinatura sónica vincada, e habita um universo sonoro tão misterioso quanto descaradamente envolvente – brilho sintético, calor orgânico e aura de fantasma. Sendo desequilibrado, mantém-nos sempre longe do aborrecimento ou do desinteresse (esta música pode ser desconcertante, nunca aborrecida ou desinteressante). Nele, 68 minutos eclécticos o suficiente para acolher pop solar extraída dos anos 1960 (Plastic raincoats in the pig parade), indie muito twee (Put your number in my phone), hard rock de laca bem doseada (Not enough violence), experimentação vanguardista falhada (o final de Dinosaur Carebears), pop sátira à Frank Zappa & The Mothers Of Invention (Nude beach a go-go), histórias patetas de strippers e adolescentes que acabam mal (o funk sintético, 80s totalmente 80s, de Black ballerina). 

Pom Pom é o álbum de um provocador ocasional e de um excêntrico inadvertido que inventou uma linguagem pop perante a qual reagimos primeiro intrigados. Chegados a este disco, não deixámos de ficar intrigados, mas a música ganhou uma curiosa familiaridade. Vivemos o presente de um passado que nunca existiu. Só não deslindámos se é rosto mesmo a máscara de Ariel Pink. Nem quando se despede assim. “Não há um Ariel Pink e um Ariel Rosenberg. As pessoas pensam que estou a interpretar uma personagem, mas só mudei o nome para encaixar num projecto musical. Quando fala comigo, fala com Ariel Rosenberg. Não sou um actor." Interessa sabermos?

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