O amor visto visto à luz da química e da literatura

Chega às livrarias este sábado um livro que faz uma viagem a exemplos da presença da química na literatura, como o Amor de Perdição ou Os Lusíadas, agrupados em temas como o amor e a paixão, o sono e o sonho, os venenos e crimes ou os novos mundos dados ao mundo pelos Descobrimentos portugueses. Foi escrito por um químico português, que é professor na Universidade de Coimbra e gosta de divulgação científica, e este é o seu primeiro livro.

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Na paixão estão envolvidas substâncias como a norepinefrina, a feniletilamina e serotonina, que são mensageiros químicos entre os neurónios ALI JAREKJI/Reuters

Romeu e Julieta, escrito entre 1591 e 1595 pelo dramaturgo inglês William Shakespeare, é o protótipo de uma história de amor trágica. Este livro envolve, como muitos outros do mesmo autor, venenos e poções, assim como a “química” do amor. Os venenos e poções em Shakespeare foram já tratados por vários autores e serão referidos num outro capítulo. Neste, trataremos da química do amor.

Na obra mais famosa de Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição (com o subtítulo Memórias de Uma Família), escrita em 1862 em cerca de 15 dias na Cadeia da Relação, no Porto, não há referências directas à química, embora o romance seja considerado por vezes (especialmente por quem não o leu) como um paradigma da repetida metáfora da “química do amor”. Não é bem assim, quanto mais não seja porque, paralelamente ao desenrolar do drama amoroso, o livro tem uma componente de romance de aventuras ao mesmo tempo negro e cómico, além de ser uma crónica de costumes, mostrando com crueza as arbitrariedades das classes dominantes e as condições de vida do povo na época em que se situa.

Também o drama amoroso do livro continua hoje em dia a ter, na minha opinião, bastante interesse. Do ponto de vista da tomada de consciência dos mecanismos químicos do amor e da atracção, as narrativas românticas vêm trazer algo de novo: a atracção amorosa é desenvolvida egocentricamente por aqueles que estão envolvidos nela, sem que esta seja provocada (aparentemente) por acções exteriores: poções, filtros ou manipulações de divindades.

Na Odisseia, de Homero, Helena e Páris foram manipulados pelos deuses, sem que pudessem resistir. Na história lendária do Tristão e Isolda, o amor incondicional resulta de uma poção. Mesmo no Romeu e Julieta, que é por vezes comparado ao Amor de Perdição, a situação é ainda relativamente ambígua. Embora o amor de Romeu e Julieta não resulte das poções e filtros amorosos que encontramos noutras peças de Shakespeare, nem pareçam existir manipulações realizadas por divindades, Cupido é referido várias vezes. E também, nesta obra, o amor é comparado a um veneno irresistível para o qual não há tratamento.

Depois dos clássicos, em que as personagens são manipuladas por divindades e drogas, com os românticos e os realistas o amor aparece como resultado de circunstâncias pessoais e processos psicológicos individuais.

Dos gregos antigos aos romances modernos, o amor, que é um fenómeno eterno, não muda, embora mude a interpretação do que é a atracção amorosa. Actualmente, acreditamos que a química do cérebro e das hormonas substituiu o controlo por divindades e as poções, assim como outros factores exteriores. Continuamos, claro, a não ser totalmente livres, mas somos nós e as nossas circunstâncias que fazem a “prisão” em que ficamos.

No Amor de Perdição, a fixação amorosa de Teresa Albuquerque por Simão Botelho e deste por Teresa começou, obviamente, como processo químico cerebral e hormonal. A manutenção de uma atracção amorosa duradoura entre as pessoas tem algumas semelhanças com a fixação instintiva das crias à mãe nos animais e do amor entre pais e filhos nos humanos. Para isso, concorrem as hormonas ocitocina e vasopressina. Mas, antes de chegar a essa fase, a atracção amorosa tem de passar por várias fases tumultuosas. Na adolescência surge o desejo por um parceiro amoroso provocado, nos homens, pela hormona testosterona, e, nas mulheres, pelos estrogénios. Depois, na presença de um parceiro desejável, a atracção, ou paixão, desenvolve se com a ajuda dos neurotransmissores [substâncias que funcionam como mensageiros químicos entre os neurónios] norepinefrina, feniletilamina, prolactiva e serotonina. Simão e Teresa são apresentados como muito desejáveis aos olhos um do outro: ele forte, belo e corajoso, ela bonita, elegante e delicada, mas os dois também carentes.

Na ausência de vida social e contactos com outros jovens, um problema que a família de Teresa tenta resolver demasiado tarde, Teresa apaixona-se facilmente por um rapaz galante, bonito e saudável, praticamente o único que vê como possível objecto amoroso. É também plausível que, numa situação particular como a do romance, em que existe um grande desamparo e solidão de Teresa e Simão, por razões diversas (Teresa tem pais distantes e Simão acha que os pais não gostam dele), essa paixão evolua para um amor duradouro que resista a ser contrariado e leve as pessoas envolvidas a renunciar a tudo o resto. Também a fixação de Mariana se foi desenvolvendo, primeiro com a gratidão devida ao salvamento do pai, depois com a galhardia de Simão Botelho a bater nos criados perto da fonte e, finalmente, com a proximidade do jovem herói. Do ponto de vista da química amorosa, não deixa de ser relevante a hesitação de Simão quanto à atitude a tomar em relação ao amor de Mariana.

Os mecanismos hormonais e a química do cérebro, que condicionam em boa parte as nossas sensações, sentimentos e atitudes perante as circunstâncias, têm muitas falhas que reinterpretamos para dar sentido às nossas vidas. As tragédias são simultaneamente tão comuns quanto raras. Os bons livros apresentam-nos situações que não têm de ser vulgares, mas que nos interrogam e ajudam a encontrar sentido para a existência.

De uma forma pormenorizada, o amor romântico segue essencialmente três fases. A primeira fase, denominada fase do desejo, é desencadeada pelas hormonas testosterona, nos homens, e estrogénios, nas mulheres. A circulação destas hormonas no sangue, que se inicia na adolescência, conduz ao início do interesse em parceiros sexuais ou amorosos. Na fase da atracção, ou da paixão, ocorrem processos de exaltação amorosa e fixação no objecto de desejo. Os neurotransmissores norepinefrina e feniletilamina (molécula que existe naturalmente no chocolate) estão relacionados com a exaltação amorosa, enquanto a dopamina, a prolactina e a serotonina controlam em parte a excitação e o prazer, com o apoio do monóxido de nitrogénio. A serotonina, associada à depressão e aos mecanismos do vício, está também envolvida no mecanismo de fixação no ente amado, apresentando níveis tão baixos nos apaixonados que os aproxima dos doentes e viciados. Com o tempo, a exaltação vai dando lugar à estabilidade, a terceira fase do amor, na qual a ocitocina tem um papel importante. Esta hormona, que induz o trabalho de parto nas grávidas, é também libertada durante o orgasmo. A vasopressina, uma hormona que participa no controlo da retenção de água e formação das memórias, parece estar ligada à fidelidade.

De uma forma mais sucinta, na paixão, a norepinefrina e a feniletilamina exaltam-nos, a serotonina prende-nos e a dopamina diz-nos que devemos ficar felizes com isso. Finalmente, a festa acalma com a ocitocina e a vasopressina, mas nada disto tira poesia ao amor nem rouba a alma e a liberdade aos seres humanos. Embora a química contribua para o funcionamento do amor, não o pode explicar completamente. O conhecimento das causas químicas e dos mecanismos bioquímicos não é suficiente para determinar as vontades nem controlar o acaso.

Uma outra história de amor bastante explorada de um modo científico é a de Tristão e Isolda. A composição do filtro do amor foi, por alguns autores, associada a solanáceas causadoras de efeitos anticolinérgicos que coincidem com os sintomas do transe amoroso apresentado na ópera homónima de Wagner e descrito nos vários livros que nos contam esta história de amor. No entanto, outros autores contestam esta interpretação. É assim a ciência, feita de contradições e discussões que contribuem para aumentar a precisão dos resultados.

“Jardins de Cristais: Química e Literatura”
Autor: Sérgio Rodrigues
Editora Gradiva
276 páginas; 13,05 €

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