Raymond Gary e a permanente tragédia do Ocidente

Precisamos de voltar à literatura, esse produto genial da cultura ocidental, para voltarmos a compreender o mundo em que nos é dado viver.

Acaba de ser publicado em português o primeiro grande livro de Raymond Gary, intitulado A Educação Europeia. O acontecimento merece ser celebrado. Trata-se de um extraordinário conto moral, dominado pela personagem de um adolescente de catorze anos que encarna a resistência dos partisans lituanos à horrenda ameaça nazi.

Gary é um autor de uma enorme complexidade, que recusa uma visão maniqueísta da vida e da história. Humanista, no mais radical sentido do conceito, reconhece na ambiguidade a principal característica do Homem. Isso não o conduz a um relativismo moral absoluto, insensível à necessidade de adopção de posições éticas claras e corajosas.

Simplesmente, Gary recusa uma representação da humanidade assente na dicotomia entre o preto e o branco. Antes valoriza o cinzento, como expressão do que de mais nobre pode existir no Homem. Nesta obra, a educação europeia perpassa tudo aquilo que caracteriza o seu universo literário: a solidão, o desespero, o amor, a solidariedade, a coragem e, mais do que tudo, a complexidade associada à existência humana. Conheci Gary através da leitura desse outro grande humanista europeu que é Tsvetan Todorov. Nos tempos já longínquos da faculdade, recordo-me do linguista de excepcionais qualidades; depois fui conhecendo o pensador político e o ensaísta de extraordinária dimensão. Todorov é um dos grandes aplicados ao presente. Não é por isso de estranhar que numa das suas mais belas obras traga ao nosso conhecimento o pensamento de Raymond Gary. De entre muitas coisas que nos recorda há uma de superlativa importância: é quando Gary se revolta contra o maniqueísmo que tudo pretende reduzir a uma contradição entre o branco e o preto e se preocupa antes com o enaltecimento do cinzento. Aí, nessa ambiguidade radical, nessa consideração do humano como uma permanente hesitação entre pólos opostos, nesse inesperado reconhecimento daquilo que numa linguagem mais prosaica se poderá considerar o bom senso, reside, contra todas as aparências, o melhor do Homem. Como essa lição é útil nos tempos que correm.

Que melhor definição poderia haver das nossas democracias representativas, das nossas economias sociais de mercado, do que esta exaltação do cinzento. Bem sei que nas horas que correm tudo concorre para uma desvalorização desta posição; vivemos num tempo marcado pela apologia dos excessos, dos radicalismos inconsequentes e dos extremismos perigosos. Tudo o que remete para um certo centrismo parece revestir-se de uma aparência quase assexuada, de um enaltecimento de uma visão eunuca da vida e da política. E, contudo, os verdadeiros eunucos políticos são os inconsequentes, aqueles que, abusando de uma retórica proclamatória, apontam para soluções impraticáveis e para um mundo inexequível. Gary, no seu absoluto humanismo, alerta-nos para esses riscos. Ele fala-nos do Homem tal como ele é, nas suas grandezas e nas suas misérias, no seu esplendor e nos seus fracassos. Por isso mesmo, recusa qualquer visão simplista da história, desobedece à gramática do primarismo antropológico. Olha para os nazis e vê neles homens, talvez desapiedados, provavelmente desprovidos do sentido mínimo da humanidade, mas apesar de tudo ligados a todos os outros seres humanos. Isso não o leva ao elogio de um pacifismo derrotista, nem tampouco à desistência da crença num humanismo redentor. Leva-o a outra coisa: a uma consciência absoluta da contradição que caracteriza cada ser humano, cada povo, cada destino histórico. Aí reside a grandeza da sua obra, da sua inteligência, da sua compreensão da realidade.

Noutras obras, Gary dedica-se a um elogio da fraqueza, da imensa fragilidade do ser humano. Recusa aquilo que identifica como as características de uma certa exaltação machista: o culto da força, da violência, da ambição obsessiva. Contra tudo isso, propõe a valorização do que num homem há de mais sensível, mais disponível para a vontade de cooperação, mais atento à necessidade de uma profunda solidariedade. Em 1980, Gary suicidou-se precisamente um ano depois de se ter igualmente suicidado a sua ex-mulher. Não sabemos até que ponto esse suicídio significa um desespero ou uma esperança. O que é certo é que na sua carta de despedida não deixa de recordar que se divertiu imenso e que, apesar de tudo, foi feliz.

De uma certa forma, a obra agora traduzida, A Educação Europeia, remete-nos para o essencial da nossa história contemporânea. Como diz uma das suas personagens, a Europa originou as melhores universidades do mundo, as mais sofisticadas experiências da inteligência, mas ao mesmo tempo promoveu a guerra, a degradação da condição humana, o triunfo da violência e da injustiça. Talvez nisso resida a permanente tragédia do Ocidente. Na distância entre as suas ideias e os seus actos, as suas aspirações e as suas realizações. Nessa estranha dialéctica, onde a nobreza e a miséria se aproximam, determina-se em grande parte o futuro da humanidade.

Gary é por isso mesmo um escritor do nosso tempo. O seu imaginário, as suas inquietações, as suas histórias, fazem parte da época presente. Nesta hora, tão dominada pelo culto da econometria, das equações, da paupérrima linguagem da estatística, fazem-nos falta os conceitos, as representações e as metáforas de um homem tão extraordinário como Raymond Gary. Precisamos de voltar à literatura, esse produto genial da cultura ocidental, para voltarmos a compreender o mundo em que nos é dado viver. Bem sei como tudo isto parece absurdo no momento que atravessamos. Contudo, essa é a única possibilidade de voltarmos a aspirar a uma verdadeira compreensão do Homem, da sociedade e da própria história. Não uma compreensão totalizante, alicerçada numa perigosa utopia hegeliana ou marxista, ou numa mais prosaica ambição positivista. Mas sim uma compreensão que remeta para um horizonte capaz de dotar de um sentido mínimo a acção do Homem.

Gary, agora felizmente traduzido em português, remete-nos para essa humilde pretensão humana: a da afirmação da liberdade como fundamento último de toda a acção histórica. Nisso reside, no fim de contas, a dignidade do ser humano. Dignidade que o enobrece e o responsabiliza ao mesmo tempo. Nesta hora, tão marcada pela predominância da linguagem puramente economicista, tudo isto parece estranho e quase irreal. E contudo, tudo isto, no fim de contas, corresponde ao essencial.

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