Preconceitos no lugar da lei

Podem pensar o que quiserem sobre Deus e sobre o mundo os juízes-conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo (STA) que decidiram reduzir o valor da indemnização a pagar por um hospital a uma doente a quem uma operação mal-sucedida danificou irremediavelmente o nervo pudendo. Podem até acreditar piamente que as mulheres, assim como os negros, não têm alma. E é-lhes até permitido crer que um dia verão um porco a voar no céu de Lisboa. Aos juízes-conselheiros é permitido acreditar em tudo o que lhes apeteça.

Agora o que os juízes-conselheiros não podem fazer, porque Portugal é um Estado de direito, é exercer a Justiça que têm como função utilizando critérios que assentam nas suas convicções e crenças pessoais. O que os juízes-conselheiros não podem é querer aplicar a sua visão do mundo como norma a seguir pelos outros. O que os juízes-conselheiros não podem é emitir uma sentença em que não respeitam a legislação do país e os direitos dos cidadãos inscritos na Constituição e nas leis.

O caso é conhecido (PÚBLICO 18/10/2014 e 21/10/2014). Há 19 anos, uma mulher, empregada doméstica, casada, mãe de dois filhos, foi operada na Maternidade Alfredo da Costa (MAC). Nessa operação foi-lhe indevidamente cortado o nervo pudendo, o que resultou numa deficiência medicamente avaliada em 73%, de incapacidade de controlo muscular diversa, a qual provoca dificuldade em andar e em sentar-se, incontinência urinária, incontinência fecal, muita dificuldade em ter relações sexuais, inchaço, perda de sensibilidade na zona vaginal e dores e mal-estar crónicos.

Hoje com 70 anos e já viúva, a mulher em causa viu finalmente o STA analisar o recurso apresentado pela direcção da MAC da sentença emitida há quase duas décadas pelo tribunal de primeira instância. E a conclusão dos juízes-conselheiros é a de que a indemnização que a mulher irá receber da maternidade seja reduzida de 172 mil euros para 111 mil euros.

Para além do facto de o STA ter levado quase duas décadas para se pronunciar, a surpresa que causou maior indignação veio das teses sobre sexualidade. Assim, para os juízes-conselheiros a mulher “já tinha 50 anos e dois filhos” na altura da operação. O que consideram ser uma “idade em que a sexualidade não tem a importância que assume em idades mais jovens, importância, essa, que vai diminuindo à medida que a idade avança”.

A indignação causada por esta decisão atingiu vários tons. A reacção mais desinteressante do ponto de vista político foi a constatação de que os dois juízes-conselheiros e a juíza-conselheira em causa têm idades entre 56 e 64 anos, o que poderia levar a concluir que esta concepção limitativa do direito à vivência plena da sexualidade lhes poderia ser extensiva.

Mas a questão central prende-se com o facto de os juízes-conselheiros verterem para os critérios jurídicos com que analisam o caso concepções sobre a sexualidade que reproduzem preconceitos e estereótipos inerentes a uma concepção ultrapassada e arcaica que choca com o que é hoje o discurso da medicina e da sexologia. Ou seja, na argumentação dos juízes-conselheiros prevalece uma concepção da sexualidade que atribui a esta apenas uma função reprodutiva, esgotada a qual as mulheres sofreriam uma espécie de morte erótica.

Como defendiam dois sexólogos citados pelo PÚBLICO, num debate sério não há espaço para tal tipo de discurso. Entre eles, Júlio Machado Vaz declarava: “São afirmações que estão erradas do ponto de vista científico. Ainda há poucos meses saíram artigos científicos na imprensa internacional confirmando aquilo que já sabíamos: uma larga percentagem de mulheres tem uma vida erótica mais satisfatória entre os 50 e os 60 anos do que antes, porque se sente mais liberta de tabus.”

É esta a base científica que leva a que o sistema jurídico e constitucional garanta o direito a uma vida sexual livre e plena enquanto elemento e base estruturante da personalidade de cada pessoa. Um direito de personalidade que na Constituição está consagrado no artigo 26.º e que o advogado Ricardo Amaral sintetizava de forma lapidar: “Não faz sentido associar a maternidade à sexualidade. Nem fazer depender da idade um direito de personalidade – como é o caso da sexualidade.” E conclui que “os direitos de personalidade relacionam-se com a dignidade humana”, sendo reconhecidos de forma “igual num bebé ou numa mulher de 90 anos”.

Ora, neste caso os juízes-conselheiros do STA não cumpriram a sua função de modo imparcial e no respeito estrito pela lei, deixando que o seu preconceito e a sua visão retrógrada do mundo e da vida, impugnada aliás nesta matéria pelos resultados da ciência, atente contra a dignidade de uma mulher.

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