Um fresco dançado sobre as emoções humanas

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Rodrigo de Sousa/CNB

Criar uma coreografia contemporânea inspirada no Sturm und Drang - o breve e emblemático movimento artístico germânico (literalmente, “tempestade e ímpeto”) que, entre 1760 e 1780, contestou o racionalismo iluminista sinalizando a transição para o subjectivismo romântico - não era um desafio fácil.

O grito juvenil, introspectivo e dramático, de Goethe (1749-1832) em Sofrimento do Jovem Werther (1774), marcou pathos de toda uma época. Estava, pois, em pano de fundo, quando Rui Lopes Graça (n.1964) e o compositor Pedro Carneiro (n.1975) mergulharam no universo geracional e contestatário Sturmer: ao convencionalismo do Antigo Regime, opunham o primado da emoção sobre a razão, a exaltação do autêntico e das turbulências próprias ao humano. Por isso, a escolha das Sinfonias 44 (O Luto), 45 (O Adeus) e 49 (A Paixão) de Haydn (1732-1809), com as suas dinâmicas imprevisíveis e contrastantes, bem representativas desse desejo de subverter ordens estabelecidas.

Depois de todas as desconstruções que já recaíram na dança no século XX, em Tempestades, o repto era conseguir pôr a “contracultura” Sturmer a dialogar com o século XXI: o movimento dos treze músicos da Orquestra de Câmara Portuguesa, em palco, foi coreografado; as sinfonias de Haydn, trespassadas de sonoridades electrónicas, foram desarticuladas; e propôs-se aos treze bailarinos desalinhar o seu treino clássico.

A contrastar com a obscuridade cénica, flores campestres projectadas num ecrã suspenso, como que recordam as personagens da sua inscrição na ordem da natureza; ao fundo, uma estrutura metálica tenuemente iluminada, emite súbitos lampejos a provocar desconforto perceptivo.

Corajosos e disponíveis, os intérpretes dispuseram-se a abandonar as respectivas zonas de conforto. Os músicos, ora perfilados, sustendo os seus instrumentos, ora deles se despojando, envolviam-se em curiosas interacções com os bailarinos: rastejam juntos, manipulam ou deixam-se manipular, transportam-nos ou deixam-se transportar. Formam como que um retrato de grupo, que se desagrega; observam-se ou agem, a solo, ou em relações de afecto, desafio, ou conflito. Riem alto, há esgares a transfigurar os rostos, ou parecem sair dos seus papéis, vocalizando as contagens da coreografia. 

Mas havia algo por resolver no modo como os (excelentes) bailarinos organizavam o idioma que melhor dominam (a dança clássica) e a vontade de o desconstruir, a pedir um trabalho de aprofundamento que potenciasse os nexos que se queriam suscitar. A sequência das secções coreográficas, embora fluente, gera alguma previsibilidade, mergulhando a peça numa certa planura energética.

Com uma mise-en-scène irrepreensível, Tempestades é um fresco sobre o quanto o medo, raiva, alegria e tristeza são parte inexorável da nossa condição biológica; e lembra-nos que os ciclos de ordem e desordem são transversais à trajectória cultural.

Num aparatoso vestido carmesim, uma silhueta, grave e silenciosa, vagueia ao longo da peça e observa, à distância, os restantes. Imagem, quiçá, da nossa própria consciência. No final, desenvencilha-se da solene allure barroca para desaparecer, despida e vulnerável, nos bastidores. Alegoria, talvez, do ocaso do Antigo Regime e da emergência de uma nova era. Mas visão do humano, exposto e indefeso, será também a de um Romantismo do qual nunca venhamos, porventura, a sair.                         

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