Os campos nazis: nunca vimos nada assim

German Concentrations Camps Factual Survey é um documentário feito a partir do material filmado pelos Aliados quando libertavam os campos de extermínio. Com supervisão de Hitchcock, pretendia ser "uma lição para a Humanidade". Durante anos, o filme esteve esquecido, tendo agora sido recuperado na sua versão integral.

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O cameraman sargento Mike Lewis, da Unidade de Cinema e Fotografia do Exército Britânico, filmando em Bergen-Belsen Imperial War Museum (IWM FLM 1232)

Nunca os meus olhos viram nada assim. E já estive em muitos campos de concentração pela Europa fora; vi demasiados filmes sobre as atrocidades nazis, tantos milhares de fotografias. Nada se compara a este filme.

German Concentrations Camps Factual Survey - que passa quarta-feira, às 22h, na Culturgest e quinta-feira, às 19h45, no Cinema Ideal, em Lisboa, no âmbito do festival DocLisboa - é um documentário feito a partir do material filmado pelos exércitos britânicos, americanos e soviéticos quando libertavam os campos de extermínio. Resultando de uma encomenda feita em Abril de 1945 pelo Comando Supremo das Forças Aliadas, foi concebido primordialmente como uma vindicta pedagógica.

No âmbito de um vasto programa de desnazificação da Alemanha, este seria o "filme oficial" que os vencedores iriam mostrar aos que haviam apoiado Hitler. Os seus primeiros minutos, aliás, assemelham-se a uma obra de propaganda feita por Leni Riefenstahl, exibindo a águia esmagadora e multidões na aclamação do seu Führer. German Concentrations Camps é um exercício de represália ou castigo e, sobretudo, um libelo acusatório – não por acaso, as imagens que contém seriam usadas como meio de prova em alguns julgamentos do pós-guerra. A acusação, no entanto, dirige-se não apenas à elite do III Reich mas a um povo inteiro e até, num certo sentido, à Weltanschauung (visão do mundo) germânica. É sintomático que, antes de se revelar o horror dos campos de extermínio, se mostrem paisagens idílicas dos lugares situados nas suas imediações.

Montanhas, castelos e lagos, trajes campestres tradicionais. Depois, surge o cheiro. Era impossível, diz-se, que aquelas raparigas louras, que em Bergen-Belsen brincavam em prados verdejantes, ou que aqueles casais que namoriscavam nas margens de Ebensee não sentissem o odor que vinha das chaminés dos fornos crematórios. Não se pode abdicar do olfacto. Mesmo os que não quisessem ou não pudessem ver o sofrimento próximo seriam incapazes de evitar a presença do cheiro emanado a poucos quilómetros dali.

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Sidney Bernstein (à esquerda), o produtor do filme, no Norte de África em 1943. À direita, major Hugh Stewart, comandante das Unidades de Cinema e Fotografia do Exército Britânico, que ordenou a cobertura completa da libertação de Bergen-Belsen Imperial War Museum (HU 38069)

No filme, procura-se ajustar contas com uma nação derrotada e o seu povo, opção compreensível atendendo ao contexto em que a obra foi realizada. Em poucos meses, porém, o cenário mudaria, entendendo-se agora que a culpabilização de todos os alemães não seria a forma mais adequada de reconstruir o país num quadro geopolítico que entretanto também se alterara, com a Guerra Fria no horizonte e a Realpolitik a impor a reabilitação silenciosa de altos funcionários do regime nazi. A par disso, e como sublinha Night Will Fall, um documentário de André Singer que acompanha de perto a feitura deste filme (passou no Doc a 17 de Outubro), o facto de milhares de refugiados não quererem sair dos campos de morte para a Alemanha, preferindo o êxodo para a Palestina, colocava sérias dificuldades às autoridades britânicas, que deixaram de ter interesse em exibir uma obra que retrava, com inultrapassável dramatismo, os tormentos por que passaram os sobreviventes.

Impacientes com os atrasos dos ingleses, os americanos decidiram produzir em 1945 o seu próprio documentário com base em parte do material filmado: Death Mills, de Billy Wilder. Ao mesmo tempo, uma nota do Foreign Office informaria o produtor, Sidney Bernstein, que nos altos círculos militares não se via com bons olhos o aparecimento de um atrocity film. O projecto não foi concluído. As bobinas acabariam por ser arquivadas em 1952 nas prateleiras do Imperial War Museum, em Londres, onde estiveram esquecidas durante longos anos. 

Supervisão de Hitchcock
Na preparação do filme German Concentrations Camps, a pedido de Sidney Bernstein, que produzia o filme para o Ministério da Informação britânico, Alfred Hitchcock tinha-se deslocado da América para supervisionar a montagem ou, nas palavras de Bernstein, ditas anos depois, para "juntar todas as peças". Os militares que filmaram a libertação de Bergen-Belsen diziam que Hitchcock ficara tão impressionado com as primeiras imagens que lhe mostraram que esteve uma semana sem aparecer nos estúdios de Pinewood. Sendo ou não verdadeira esta história, o papel de Hitchcock situa-se a meio caminho entre o de um realizador clássico (na verdade, não dirigiu a tomada das imagens nem sequer esteve nos campos) e o de responsável pela montagem. Terá sido, como refere a ficha técnica do filme, um "treatment adviser". Em todo o caso, há o inegável risco de, a partir de agora, esta obra passar a ser conhecida como "o documentário de Hitchcock sobre o Holocausto" e, pior ainda, em pretender ver na sua filmografia subsequente vestígios desta experiência, que decerto terá sido marcante, talvez traumática, mas ainda assim episódica e efémera. Num depoimento de 1962, Hitchcock qualificou o papel que teve como o seu "esforço de guerra", dado que a sua idade e o seu peso jamais lhe permitiriam entrar em combate.

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Mulher assiste a enterro em Belsen, catalogada nas filmagens como "reacção de rapariga" Imperial War Museum (IWM FLM 1002)

Sendo impossível determinar a dimensão do contributo de Hitchcock – em comparação, por exemplo, com o do editor Stewart McAllister ou de Richard Crossman, o autor do script –, reconhece-se que a ele se devem muitos dos elementos que conferem a esta obra uma subtileza e uma densidade que o filme de Billy Wilder não possui. A ele pertence uma das ideias centrais deste filme, segundo a qual a generalidade dos alemães sabia o que se passava nos campos. Daí a apresentação, numa linguagem visual extremamente simples, de mapas que assinalavam a localização geográfica dos campos, na vizinhança de cidades como Munique ou Weimar.   

Se todo o filme está construído de uma forma "manipulatória", algumas passagens evidenciam mais flagrantemente os traços de uma intervenção que visava obter o máximo efeito junto do auditório. Por exemplo, quando o folhear de um álbum de fotografias familiares é entrecortado por grandes planos de cadáveres horrivelmente esfacelados; ou quando à apresentação de corpos subnutridos se sucedem imagens de mulheres nuas que tomavam o seu primeiro duche quente em muitos meses ou anos. Uma "orgia de limpeza" diz-nos o narrador. Neste passo, há alguma voluptuosidade na exposição demorada dos corpos femininos inteiramente despidos, o que para os padrões morais da época seria impensável noutros contextos ou lugares. Os campos eram, até no registo da sua memória, um território de excepção, ponto salientado por um dos operadores de câmara: "jamais poderíamos associar aquilo que víamos às nossas próprias vidas (…). Era outro mundo. Se nos envolvêssemos naquilo, teríamos enlouquecido".

Todas as oportunidades são aproveitadas para menosprezar o inimigo derrotado, geralmente com uma ironia onde é impossível não adivinhar a influência de Hitchcock. Quando se mostra detidamente o banho das mulheres, diz-se que aqueles eram os seres humanos que, segundo os nazis, tinham poucos ou nenhuns hábitos de higiene. Ao apresentar-se os guardas das SS a proceder à tarefa horrível de inumar os corpos, afirma-se que, se aquele era o escol de uma "raça superior", se tinham sido treinados para matar a sangue-frio, certamente não lhes seria difícil realizar o trabalho de enterrar os mortos. Esse sarcasmo, porventura fruto de uma incontida raiva mais do que do propósito de fazer humor, leva o narrador a dizer, perante as imagens de dezenas de idosas acamadas, que aquelas senhoras "eram consideradas uma ameaça para o Estado". Mostram-se ossadas humanas, dizendo-se que eram usadas como fertilizantes; logo de seguida, o plano de um campo de couves, acrescentando-se que provavelmente muitos alemães se alimentavam com legumes que cresciam graças aos restos mortais das suas vítimas. Não há qualquer momento de complacência nem espaço para tolerâncias.  

Dentro da mesma lógica que os levara a produzir este filme, os Aliados traziam aos campos as autoridades locais mas também os cidadãos vulgares, que contemplam o cenário macabro com os olhos postos no chão; diz-se a dada altura que, numa medida ou noutra, todos eles eram culpados pela tragédia. A caminho de Buchenwald, muitos habitantes de Weimar iam felizes, sorrindo para a câmara. Até ao momento em que lhes é mostrada uma mesa onde se apresentavam pedaços de pele tatuada que os nazis retiravam às vítimas e as cabeças reduzidas de dois polacos capturados quando tentavam fugir.   

O filme percorre diversos campos, obedecendo a uma estrutura narrativa que, também do ponto de vista da impressão causada no espectador, se afigura extremamente eficaz e dilacerante. A sequência é dada pela sucessão dos vários campos de morte, cada qual funcionando como capítulo ou separador do relato. Após a indicação do nome do campo, assinala-se num mapa o local. As primeiras imagens mostram os mais saudáveis, que acorriam em festa à chegada das tropas. Em Dachau, a câmara acompanha o avanço dos jipes entre os sobreviventes que se afastam para abrir caminho aos seus salvadores. Só depois aparecem os corpos. Espalhados pelo chão ao acaso, tantos e tão desfigurados que a sua presença já nem impressiona os que ali se encontravam. Ou empilhados ao acaso, num aglomerado disforme. Surpreendem pela sua extrema alvura, que contrasta com as tonalidades escuras do meio envolvente, dos uniformes dos soldados e, sobretudo, dos sobreviventes. Nas valas, de uma extensão imensa, os corpos tombam sobre terra deslizante, enquanto no fundo alguém os vai arrumando, para facilitar a chegada de mais e mais cadáveres. Aos milhares.

Noutro campo, corpos carbonizados, deitados no chão. Alguns têm as cabeças levantadas, como se aguardassem algo enquanto rastejavam queimados, nos derradeiros instantes. No filme, o sangue esvaiu-se, não se vê. O narrador fala de mulheres que parecem "estátuas de mármore". Em alguns locais, os corpos empilhados encontram-se hirtos, denotando uma total rigidez, como se fossem manequins; noutras paragens, são transportados e atirados às valas como bonecos desarticulados.  

Não há uma exploração do horrível pela simples razão de que seria desnecessária. Mas existe um propósito claro de evitar eufemismos ou elipses e, pelo contrário, de expor o mal na sua radical crueza. Nenhum detalhe é poupado. Vezes sem conta, a câmara perscruta o interior dos fornos crematórios, buscando restos mortais, ossos fumegantes que as chamas não devoraram. O objectivo, insiste-se, não é voyeurista ou sequer propagandístico; tratava-se, acima de tudo, de recolher provas – e essa demanda exigia um levantamento completo, mas especialmente focado naquilo que mais se prestava a ser posto em dúvida: sacos com cabelos, ossadas em crematórios, experiências com gémeos.

Na montagem do filme, Hitchcock aconselhou a equipa a escolher planos-sequência, sem cortes, para que dessa forma a apresentação das cenas ganhasse mais credibilidade. Com efeito, a alternância rápida de vários planos induziria a desconfiança do auditório e levá-lo-ia a pensar que tudo o que via não passava de um artifício encenado: fragmentos de pele humana, cabeças trepanadas de olhar vazio, seres que vagueavam amparados pelos seus semelhantes.
 
Exercícios de autodefesa
À distância de tantas décadas, o filme é ainda tão impressionante que nos impede de sobre ele formularmos qualquer juízo. Dificilmente alguém ousará dizer se é "bom" ou "mau". Temos também consciência de que German Concentrations Camps procurava algo mais do que servir a culpabilização colectiva dos alemães, objectivo demasiado patente no filme de Billy Wilder. Além do projecto de tradução em várias línguas e de exibição em diversos pontos do mundo, é a esta luz que se compreende que, a dado passo, a voz do narrador enumere sincopadamente todos os povos vitimados pelo nazismo.

Num depoimento de 1984, Bernstein afirmou que, entre o mais, o filme visava ser "uma lição para a Humanidade". De facto, por muito perturbadoras que sejam as imagens dos cadáveres, o filme é também um testemunho da reconstrução e, sobretudo, da recuperação dos sobreviventes, com as mulheres a tomarem banho e a escolherem vestidos, os doentes de tifo a serem tratados, uma criança a ingerir a sopa de uma enorme tijela, serenamente e até à última gota, sem sofreguidão alguma.

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Crianças sorriem atrás de arame farpado Imperial War Museum (IWM FLM 1497)

Reagimos às imagens com dispositivos defensivos, procurando refúgio em explicações do conteúdo ou enquadramentos contextuais. Fixamo-nos no objecto fílmico, contamos a história da sua redescoberta e outros pormenores acessórios para evitarmos o confronto com o objecto filmado, com a realidade que nos é trazida pela visão de um crânio aberto, de onde escorre uma massa encefálica que outrora alojou pensamentos e emoções.    

Apercebemo-nos de que o filme não atribui lugar central aos judeus. Estes são tratados como vítimas, a par de católicos e protestantes, num registo "ecuménico" que por certo desagradará aos que, nos meios judaicos, defendem a absoluta singularidade do Holocausto. Esta omissão de uma referência mais explícita aos judeus poderá dever-se, novamente, ao contexto em que o filme foi produzido.

Todas as análises deste género, porém, recuam perante as imagens dos cadáveres e dos sobreviventes. Procurar analisar o filme e discorrer sobre o seu "contexto" são exercícios de autodefesa, formas elusivas de lidar com uma realidade que é insusceptível de ser representada. Ou, talvez, que se afigura como absolutamente representativa, no sentido em que convoca e torna presente o ausente, aquele que se ausentou por ter sido morto numa acção de assassínio em massa.   

Se os que presenciaram e registaram os acontecimentos ficcionavam que estavam num universo paralelo e num mundo-outro, nos nossos dias somos obrigados a ver este filme remetendo os seus protagonistas para esse lugar de ausência, onde nos surgem não já como pessoas mas como imagens, fantasmagorias. Terríveis imagens, sem dúvida, mas, parafraseando o ensaísta Didi-Hüberman, imagens apesar de tudo. Imagens apesar do tempo e do propósito com que foram feitas, imagens apesar de sermos incapazes de saber como olhar para elas hoje. Só dessa forma, como imagens apesar de tudo, seremos capazes de as encarar sem mergulharmos na vertigem da loucura.

Uma versão parcial deste filme já era conhecida em 1984, numa montagem com o título Memory of the Camps. Mas só agora, com a descoberta da "sexta bobina" e o seu tratamento digital, German Concentrations Camps Factual Survey alcançará o estatuto que merece. Depois de ter sido apresentado em Fevereiro passado no Festival de Cinema de Berlim, irá fazer uma ampla digressão mundial, com escala no DocLisboa. Após várias décadas de penumbra e esquecimento, este périplo corresponde às intenções originais dos promotores do filme, cumprindo-se assim o desígnio de Sidney Bernstein e da sua equipa.   

Poder-se-ia dizer que, volvidas tantas décadas, o filme acusa as marcas do tempo e a erosão dos excessos da "indústria do Holocausto". Puro engano. A força expressiva de German Concentration Camps Factual Survey permanece intocada, mesmo que já tenhamos estado em campos de concentração ou visto milhares de imagens dos crimes do nazismo. Comparadas com estas imagens – imagens apesar de tudo – muitos dos filmes sobre a Solução Final tornam-se grotescos, quase caricatos. Nunca os nossos olhos viram nada assim.
Historiador

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Ex-prisioneira aplaude os Aliados a 16 de Abril de 1945 Imperial War Museum (IWM FLM 1001)

Texto alterado dia 22 de Outubro: a sessão no Cinema Ideal é quinta-feira e não no sábado

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