Os pobres e a manga do colete

Nas duas extremidades da sociedade brasileira é que a discussão acontece da forma mais pragmática.

Era meados de junho e um pequeno grupo de jornalistas conversava animadamente sobre as perspectivas de vitória nas eleições de 5 de outubro. As convenções partidárias tinham acabado de confirmar os nomes para a disputa e, em torno de um mapa do Brasil, os autodenominados especialistas especulavam as chances de cada um deles, segundo as negociações em curso nos 27 estados brasileiros.

A moça negra e sorridente entrou na sala com uma bandeja e serviu o café. Ao entregar a última xícara perguntou se poderia falar.

Mas claro! – disseram todos, cheios de curiosidade. Que bom poder ouvir alguém do povo.

 “Só queria dizer que se não tiver uma proposta boa para os pobres na manga do colete desses candidatos que vocês estão falando, não sei não”, disse ela com toda solenidade.

Manga de colete e oposição na mesma frase tiveram o condão de calar os pretensiosos entendidos em articulações eleitorais. Claro, os pobres! Esses que foram os beneficiados mais evidentes dos últimos doze anos de mandato petista estiveram fora da equação das projeções. E não apenas eles. O imponderável também apresentaria sua incógnita.

Passadas poucas semanas desta cena, algo dramático iria acontecer. O desastre aéreo que matou o candidato socialista Eduardo Campos catapultou a companheira de chapa Marina Silva para o segundo lugar nas pesquisas e passou a ameaçar com força inesperada a vitória de Dilma Roussef no segundo turno. O Partido dos Trabalhadores teve de alterar drasticamente sua estratégia e os analistas suas versões educadas.

Tão Silva quanto Lula, Marina deixou para trás o candidato Aécio Neves, do PSDB de Fernando Henrique Cardoso, até então o principal desafiante. Aécio despencou nas pesquisas e, em poucos dias, já podia dar adeus a qualquer esperança de vitória.

A esta altura, todo o esforço de Dilma Rousseff nas últimas semanas parece ter sido bem sucedido ao consolidar no primeiro lugar um território de votos cativos, correspondente a pouco mais de um terço do eleitorado. Mas Marina mostrou uma performance excepcional ao escalar e manter as intenções do eleitor a seu favor e segue com vaga garantida no segundo turno. Em tese, com os eleitores oposicionistas órfãos de um candidato do PSDB – Aécio tem entre 15 e 19% dos votos – Marina está eleita. Mas não é o que dizem as pesquisas.

Marina e Dilma empatam nas previsões para a segunda rodada das eleições em 26 de outubro, indicando que há ainda uma parcela de eleitores que alterna sua disposição diante de três ou de duas candidaturas. É para esse grupo que falam as campanhas ao assumir tons cada vez mais estridentes. Na disputa está um eleitor de alguma escolaridade que, beneficiado pelas políticas sociais dos governos Lula e Dilma, pondera riscos. E há também os muito preocupados com a cena econômica.

No singular sistema eleitoral brasileiro, a campanha maciça se dá no programa eleitoral gratuito em que as candidaturas conseguem mais tempo de exibição quanto maior for o número de partidos que consigam aglutinar em sua coligação. Não é à toa que agremiações políticas sem qualquer lastro popular multiplicam-se mais velozmente no Brasil do que em qualquer outra parte. Ter minutos a oferecer a um líder forte pode garantir aos partidos nanicos, em caso de vitória da coligação, um cargo de ministro, algumas diretorias de estatais, empregos para apaniguados.

Somando legendas ao PT, Dilma conseguiu mais de 12 minutos de propaganda no rádio e na TV, duas vezes por dia, três vezes por semana. Marina tem de dizer tudo o que quer e pode em apenas 2 minutos. Em seu latifúndio temporal, Dilma vem usando artilharia forte para tentar abater Marina nesse seu altaneiro voo rumo ao segundo turno. A reação da candidata socialista no programa, por sua vez, vem produzindo um paradoxal efeito. Ela pode ter figura magra e frágil e voz fina e fraca. Mas seu discurso é poderoso – seja sobre sua origem pobre nos confins da Amazônia ou suas convicções políticas.

Esse embate cáustico e emocional pode não ter resultado em caminhões de votos para nenhuma das duas candidatas ao ponto de se poder prever, a pouco mais de duas semanas da eleição, quem sairá vencedor. Mas enquanto elas se digladiam no rádio e na TV, o debate que importa acontece em outras rodas.

Dilma encerra seu primeiro mandato com a economia sem fôlego e o produto interno com crescimento perto de zero. Sua política macroeconômica é alvo de críticas agudas em que se pondera a necessidade de um ajuste bastante duro nos próximos anos para arrumar as contas públicas e reorganizar os gastos governamentais. O custo popular disso é algo discutido intramuros, em círculos fechados.

O PT e a presidente contornam questionamentos sobre a gestão econômica alternando respostas. Ora na defesa populista do modelo que manteve o nível de emprego e as políticas sociais em cenário adverso, ora acenando com a mudança da equipe para tranquilizar setores empresariais inconformados com as perspectivas de futuro.

Marina precisou, logo de saída, oferecer respostas mais claras para a elite preocupada com seus posicionamentos anteriores sobre o agronegócio, o mercado financeiro e de energia, a macroeconomia. Seu discurso econômico faz afagos nos liberais e tenta oferecer alternativa mais segura aos que procuram resposta para a grande pergunta desta eleição: Dilma, num segundo mandato, mudará a matriz econômica ou dobrará a aposta no modelo que instituiu e faz água?

Entretanto, grandes empresários, academia e analistas ainda não estão certos de que Marina, no comando do país, cumprirá com determinação preceitos que se parecem muito mais com os do PSDB de Aécio Neves. E se ela emergir presidente para pôr em prática uma agenda secreta voltada para a intransigente defesa da sustentabilidade em todos os campos da vida do país? E se não conseguir conter seu horror a setores como o agronegócio ou às negociatas com partidos? Seria ela a pessoa adequada para enfrentar um Congresso fisiológico ao mesmo tempo em que precisará adotar medidas saneadoras do Estado e da economia?

A dúvida sobre qual das candidatas está mais apta a recuperar o crescimento econômico paira sobre as elites enquanto as militâncias se enfrentam furiosamente nas mídias sociais com temas muito mais populares do que a autonomia do Banco Central ou o superávit primário. Parcelas da classe média urbana tentam avançar com questões como o casamento homossexual, o aborto e a liberação das drogas sobre o movediço terreno da religiosidade do país. Ou pedem medidas contra a corrupção ou a repressão aos movimentos de rua. Mas esses são assuntos que não conseguem galvanizar eleitores para além dos movimentos organizados. Os candidatos mal tocam nisso.

Nas duas extremidades da sociedade brasileira é que a discussão acontece da forma mais pragmática.

No vagão do trem metropolitano que todos os dias leva e traz a moça do café de uma cidade-dormitório para o centro de São Paulo, o debate está muito animado, conta ela. E o que se discute durante as viagens?

“A gente agradece tudo o que o PT fez por nós mas a Dilma não é o Lula”, diz. “O pessoal está com muito medo de perder o emprego, alguns já foram demitidos, alguma coisa vai acontecer.”

E a Marina? “A gente não sabe ainda. Na verdade, a gente não tem a menor ideia.”

Jornalista da Globo News, coordenadora do programa Entre Aspas

Sugerir correcção
Comentar