O bypass europeu: ainda a Escócia, ainda a Europa

O recrudescimento das aspirações independentistas só é possível porque a União Europeia atingiu o grau de maturidade institucional e política que atingiu.

1. Na semana passada, evidenciou-se aqui como o discurso dos políticos ingleses estimulou, de alguma maneira, por efeito de imitação – na teoria do federalismo, falar-se-ia de isomorfismo (Lijphart) –, o despontar do sentimento e do ressentimento independentista escocês. E deu-se até o exemplo paralelo do estímulo à não solidariedade federal que o discurso dos políticos alemães, no contexto da crise europeia, tem provocado no interior da Alemanha, acicatando rivalidades e tensões entre os estados federados. De resto, o fenómeno das regiões ricas do Norte que não querem pagar as contas das regiões pobres do Sul está presente – verdadeiramente omnipresente – em toda esta discussão da autodeterminação de “novos” povos europeus. A Flandres é bem mais rica do que a Valónia, a Padânia cansou-se de sustentar o Mezzogiorno, o País Basco e a Catalunha queixam-se amargamente da factura que lhes é imposta pelas zonas pobres da Espanha. Curiosamente, só a Escócia – que também está a Norte – não é mais rica do que o Sul. Mas esta conclusão pode ser precipitada, pois os velhos Pictos fazem as contas ao petróleo do Mar do Norte que, se se convertesse numa receita própria e exclusiva dos escoceses, logo os tornaria – arriscam eles – numa espécie de segunda Noruega ou, ao menos, de segunda Dinamarca. Em menos palavras: a retórica dominante da crise das dívidas soberanas, com o seu ajuste de contas permanente, não ajudou a serenar a emergência destes sentimentos autonomistas.

2. É óbvio, todavia, que esta questão não é meramente económica – e esse é um dos erros dos adeptos do “não”, que insistem numa mera contabilidade de “viver melhor, viver pior”, desvalorizando a profunda carga espiritual e simbólica de uma escolha deste tipo. E é igualmente óbvio que a questão não se pôs como um efeito lateral ou colateral do uso ou do abuso de um certo tipo de discurso por banda dos responsáveis políticos. Um movimento fundo e sério em direcção à independência não pode nunca ser uma simples refracção da ambiguidade e do oportunismo enviesado do discurso político. A questão é muito mais dura e muito mais densa.

3. São muitos os que – decerto em desespero argumentativo – para aí vaticinam a inviabilidade de um Estado escocês ou de um Estado catalão. Mas a primeira pergunta a que terão de responder é a de saber se acham que Malta, Chipre, Luxemburgo, Estónia, Letónia ou Eslovénia são ou não Estados viáveis… Sim, porque um independentista flamengo ou veneziano não vislumbra que secreta razão empresta viabilidade à Estónia ou a Chipre e não a havia de conferir ao País Basco ou à Catalunha. E há-de querer saber o que a Irlanda ou a Dinamarca têm que não tenha uma destas regiões aspirantes a Estados. Eis os perigos que sempre traz uma argumentação puramente economicista.

A querer levantar objecções, talvez a questão deva ser reformulada e suscitada por um outro ângulo. Reformulemos, pois. A Estónia ou a Eslovénia seriam viáveis como Estados e enquanto Estados se não existisse a União Europeia? Não será o “guarda-chuva” político e constitucional da UE o garante da viabilidade de uma série de Estados – a bem dizer, de pequenos Estados? E não será um garante tão intimamente ligado à sua viabilidade e à sua continuidade que, de algum modo, altera a própria natureza estadual tal como ela era tradicionalmente concebida?

4. O ponto que se quer aqui marcar talvez pareça surpreendente vindo de um europeísta. Mas nem por isso deve ser iludido. Em certa medida, o recrudescimento das aspirações independentistas só é possível porque a União Europeia atingiu o grau de maturidade institucional e política que atingiu. Num mundo globalizado, a ideia de um Estado flamengo ou escocês pareceria uma miragem, se eles não tivessem um quadro constitucional de integração numa entidade com outra dimensão, peso e desenvoltura. O que sucede é que, a partir do momento em que eles podem integrar-se na UE, deixam de precisar do Estado de suporte em que estavam inseridos. Na verdade, essas comunidades políticas de baixa densidade – chamemos-lhe assim à falta de uma qualquer nomenclatura – não compreendem porque hão-de coexistir dois níveis político-constitucionais acima delas. Se têm Bruxelas, não carecem de Londres. Se dispõem de Bruxelas não necessitam de Madrid. A subsistência de uma entidade constitucional não estadual num patamar acima dos Estados passa a permitir uma ligação imediata e directa entre o nível mais baixo e o nível mais alto, sem ter de passar pelo grau do Estado-nação (ou, mais exactamente, Estado vestefaliano).

Nada que nos deva espantar. Com efeito, a UE, desde sempre, foi uma aliada financeira e administrativa, mas também política, das regiões. É bem conhecida a velha divisa “Europa das regiões”. Esta aliança táctica entre a Europa e as regiões tinha naturalmente um desígnio comum: retirar poder e poderes ao Estado-nação (ao Estado central e centralizado). Tratava-se de um movimento simétrico, mas convergente no esvaziamento dos poderes do Estado enquanto centro político: as regiões tiravam por dentro, a Europa retirava por fora. E quanto menos poder tivesse dentro, mais fácil era puxá-lo para fora; e quanto menos poder tivesse fora, mais simples era subtraí-lo para dentro.

5. Tudo isto serve para compreender que as tensões centrífugas a favor das regiões não andam desligadas das tensões centrípetas a crédito de Bruxelas. Os eurocépticos pensarão que, dados os riscos e ameaças destes movimentos secessionistas, este é mais um motivo para esconjurar a União e a sua lógica. Mas o que está em causa é talvez mais fundo e mais denso: é a própria natureza da forma política Estado que está em manifesta transformação. É, aliás, isso que favorece o regresso à Europa destas comunidades políticas menores, criando um tecido de grandezas assimétricas e de equilíbrios típicos de um caleidoscópio. À boa maneira heraclitiana, a constituição está em devir.

SIM e NÃO

 

 

SIM. Câmara do Porto. A qualificação da marginal entre as pontes Luiz I e Maria Pia simboliza a recuperação da parte oriental da cidade e alarga a dinâmica vibrante do centro histórico.

NÃO. Renúncia da administração do Novo Banco. Para lá dos efeitos nocivos da instabilidade, não é curial que não se contasse com a ocorrência de (mais do que uma e significativa) “alteração de circunstâncias”. 
 

 

 

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