Rússia altera doutrina militar em resposta ao reforço da NATO

Moscovo diz que a Aliança Atlântica "vai continuar a figurar entre as maiores ameaças militares à Federação Russa". Vladimir Putin terá dito que "podia tomar Kiev em duas semanas".

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Está contemplada "a independência da Rússia na produção de armas, equipamento e outro tipo de material militar" ANATOLII BOIKO/AFP

As relações entre a NATO e a Rússia já estavam reduzidas a pouco mais do que uma formalidade, mas o período de maior afastamento das últimas duas décadas atingiu agora um patamar ainda mais preocupante, com Moscovo a anunciar que vai rever a sua estratégia militar depois de a Aliança Atlântica ter revelado que vai criar uma força de reacção rápida na Europa de Leste.

O anúncio foi feito nesta terça-feira pelo vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Mikhail Popov, numa entrevista à agência noticiosa RIA Novosti.

Mais do que detalhar os pormenores das emendas que as autoridades russas vão fazer à sua actual doutrina militar, a ideia foi responder à nova estratégia da NATO, anunciada na segunda-feira pelo secretário-geral, Anders Fogh Rasmussen.

"Não tenho dúvidas de que a ocupação das nossas fronteiras pela infra-estrutura militar da NATO, através da expansão da Aliança, vai continuar a figurar entre as maiores ameaças militares à Federação Russa", afirmou Mikhail Popov.

Entre as mudanças que Moscovo está a preparar para enfrentar o que considera ser a ameaça da NATO está "a independência da Rússia na produção de armas, equipamento e outro tipo de material militar", escreve a agência RIA Novosti.

"A vida mostra-nos que a fiabilidade dos nossos parceiros do Ocidente é uma coisa temporária, e está, infelizmente, intimamente relacionada com a situação política", acusou o responsável russo.

O corte de relações entre a NATO e a Rússia ainda não é total porque o Conselho NATO-Rússia continua a existir, com conversações entre embaixadores, mas a Aliança Atlântica suspendeu a colaboração com Moscovo em Abril, após a anexação da península da Crimeia.

Um indicador da rápida degradação das relações é a conta no Twitter do Conselho NATO-Rússia. As mensagens mais recentes são de 28 de Janeiro, e mostram fotografias de Anders Fogh Rasmussen a cumprimentar efusivamente o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov. Numa delas, escrita pelo secretário-geral da NATO, lê-se: "Conversações construtivas com o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia Lavrov. Discutimos todos os assuntos relacionados com a colaboração no Conselho NATO-Rússia."

Um mês depois começava a crise na península da Crimeia, que viria a ser anexada pela Rússia, e as relações entre as duas partes começaram a atravessar o período de maior afastamento das últimas duas décadas – deixando-as mais próximas do período da Guerra Fria.

A actual doutrina militar russa, aprovada em 2010 pelo então Presidente, Dmitri Medvedev, é descrita como "estritamente defensiva", mas reforça a ideia de que a NATO constitui uma ameaça – uma notícia da agência RIA Novosti, de Maio de 2010, avançava que "os ajustamentos à doutrina militar do país foram motivados por ameaças e desafios reais enfrentados pela Rússia".

Ao revelar a intenção de actualizar novamente a doutrina militar russa até ao fim do ano, o vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia acusou vários países do Ocidente de estarem a ir contra o que defendiam há quatro anos.

"Em 2010, este ponto da doutrina militar motivou uma forte reacção. Vários responsáveis de primeira linha acusaram os líderes do nosso país de terem um pensamento ultrapassado, alegando que a NATO não é um inimigo da Rússia. Garantiram-nos que tinham boas intenções, mas as movimentações nos últimos anos sugerem uma coisa completamente diferente", disse Mikhail Popov.

Para agravar ainda mais o clima de tensão, o jornal italiano La Repubblica conta que o Presidente russo, Vladimir Putin, terá dito que tomaria Kiev em apenas duas semanas, se fosse esse o seu desejo. Segundo o jornal italiano, a afirmação foi proferida durante uma conversa telefónica com o ainda presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, que terá depois transmitido a declaração de Putin aos líderes europeus durante a cimeira do Conselho Europeu, no sábado.

O jornal italiano diz que o Presidente da Rússia respondia a uma questão de Durão Barroso sobre a presença de tropas russas no Leste da Ucrânia: "O problema não é esse, mas se eu quisesse, tomaria Kiev em duas semanas", terá respondido Putin.

Um dos conselheiros do Kremlin, Iuri Ushakov, disse que as palavras de Vladimir Putin foram citadas fora de contexto, e aproveitou para criticar Durão Barroso. "Isso não se faz e não está de acordo com a prática da diplomacia, se é que ele disse isso [aos líderes europeus]. Não é apropriado para uma figura política séria", disse Ushakov.

NATO prepara força de reacção rápida
As declarações do vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia sobre a doutrina militar do país surgem apenas um dia depois de o secretário-geral da NATO ter anunciado uma mudança na estratégia da aliança, que vai ser discutida durante a cimeira de quinta e sexta-feira, no País de Gales.

Para melhorar a capacidade de resposta da NATO a possíveis consequências da guerra na Ucrânia – e tranquilizar os países da Europa de Leste e os Estados bálticos, que dizem temer uma intervenção militar russa nos seus territórios –, a Aliança Atlântica vai criar uma força com 4000 tropas, que poderá ser enviada em apenas 48 horas para qualquer cenário em que a sua presença seja considerada necessária.

Segundo Anders Fogh Rasmussen, a nova força será constituída por uma mistura de tropas de unidades regulares e forças especiais, com capacidade para "viajar com pouco material mas atacar com força", com apoio naval e aéreo quando necessário.

É a resposta da NATO a um conflito que expôs as limitações da sua capacidade de resposta – para os líderes da Aliança Atlântica, a Rússia está a levar a cabo uma "guerra híbrida", num misto de envolvimento militar directo, envio de armamento, ataques cibernéticos e uma guerra de informação e contra-informação, que torna quase impossível provar se há de facto tropas russas no terreno, apesar do novo fôlego demonstrado pelas forças separatistas nas províncias de Donetsk e Lugansk.

"Estas crises podem surgir de um momento para o outro, desenvolverem-se a grande velocidade e podem afectar a nossa segurança de várias formas", disse Anders Fogh Rasmussen.

A NATO já tem uma presença militar na região, mas pouco mais conseguiu fazer nos últimos meses do que aumentar o número de caças em patrulhas de rotina e exercícios. A nova força será uma espécie de "ponta-de-lança" da presença militar da NATO na zona, disse o secretário-geral, tentando relativizar a importância da medida à luz do documento que orienta as relações com a Rússia, aprovado em 1997.

No ponto IV desse documento, relativo aos assuntos político-militares, a NATO reiterou que "no actual e no previsível clima de segurança, a Aliança irá desenvolver a sua defesa colectiva e outras missões através da garantia da necessária interoperabilidade, integração e capacidade de reforço, em vez do reforço da presença permanente de forças de combate substanciais".

O secretário-geral da NATO sublinhou que a nova força será constituída por tropas de vários países-membros em sistema de rotação, mas, como assinala o jornal britânico The Guardian, "uma rotação constante significa, na prática, que a NATO terá uma presença permanente nos Estados bálticos". O mesmo jornal avança que a força de reacção rápida apresentada por Rasmussen é diferente da proposta britânica para a criação de uma força com 10.000 soldados, que poderá realizar também missões de manutenção de paz em colaboração com a União Europeia.

Apesar de uma e outra forças poderem responder a outras eventuais crises que ameacem um membro da NATO, é inegável que as duas propostas foram motivadas pela anexação da Crimeia pela Rússia e pela guerra no Leste da Ucrânia – apesar de a Ucrânia não ser membro da NATO, países como a Polónia e a Estónia têm manifestado o receio de que o conflito se estenda aos seus territórios.

Vários membros da NATO têm manifestado relutância em reforçar a presença da Aliança na região, com receio de que essa medida seja vista como uma provocação pelo Kremlin, mas Anders Fogh Rasmussen deixou claro que a cimeira de quinta e sexta-feira irá "chegar a acordo para um Plano de Acção de Prontidão, para tornar a NATO mais ágil do que nunca".

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