Directiva de acesso a cuidados de saúde transfronteiriços poderá beneficiar apenas os mais favorecidos

A partir desta segunda-feira, os portugueses têm acesso a cuidados de saúde em qualquer país da União Europeia.

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Hospitais públicos poderão ter que arcar com despesas de idas ao estrangeiro

Em teoria os doentes do Serviço Nacional de Saúde português (SNS) têm desde esta segunda-feira garantido o direito a cuidados de saúde prestados em qualquer país da União Europeia, nomeadamente em casos em que o Estado português não os providencie “num prazo útil”. Mas na opinião de especialistas a obrigatoriedade de ser o doente a pagar os tratamentos à cabeça e a arcar com viagens e alojamento significa que só os mais favorecidos beneficiarão.

A directiva europeia, que é de 2011 mas foi agora transposta para a legislação portuguesa, pretende acabar com barreiras à circulação no espaço europeu também em matéria de saúde. Mas uma coisa são as leis, outra a sua aplicação, refere a ex-ministra da Saúde, Ana Jorge, que não conhece a versão final do diploma, mas que sempre levantou dúvidas quanto à sua aplicação em Portugal.

Ana Jorge nota que “ a informação em saúde não é igual para toda a gente. Quem tem mais informação e conhecimento tem mais poder de decisão e de poder investir financeiramente, contrariamente a quem tem menos recursos”. A médica teme que a sua aplicação possa “aumentar a desigualdade face ao acesso a cuidados de saúde”. O que pode estar em causa, na sua opinião, é “o Estado poder financiar do dinheiro de todos para dar a alguns. É um risco da directiva para um país como Portugal”. Para contrabalançar este dinheiro que sairia do país seria preciso que Portugal se tornasse atractivo em termos de cuidados de saúde e, mesmo estas vindas de estrangeiros, poderiam criar situações de acréscimo de dificuldade de acesso à saúde aos cidadãos que vivem em Portugal.

O ex-presidente da Entidade Reguladora da Saúde, Álvaro Almeida, nota que em países do centro da Europa, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, em que as distâncias são pequenas e as deslocações pouco onerosas, pode haver maior uso deste recurso por parte dos cidadãos, mas em Portugal, devido à distância geográfica, não lhe parece que haja grandes possibilidades de ir a outros países, excepção feita a situações da fronteira com Espanha. Isto porque as viagens e o alojamento são sempre pagos pelo doente, algo que só estará ao alcance de poucos, nota o responsável que é director do mestrado em Gestão e Economia da Saúde da Faculdade de Economia do Porto.


Adalberto Fernandes, professor de Gestão da Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, junta a essa restrição o facto de o doente ter que avançar com o valor das despesas e só depois ser reembolsado pelo Estado. É por isso que não tem dúvidas em dizer que havendo estas barreiras económicas irá “beneficiar a classe média, média alta. Não gera equidade”.

A juntar a esta barreira, juntam-se os obstáculos técnicos e clínicos. A transposição que o Estado português fez da directiva europeia prevê um sistema de autorizações prévias. Está, por exemplo, sujeito a autorização prévia “o reembolso dos cuidados de saúde transfronteiriços cirúrgicos que exija o internamento durante pelo menos uma noite”, assim como “o reembolso dos cuidados de saúde transfronteiriços que exijam recursos a infraestruturas ou equipamentos médicos altamente onerosos e de elevada especialização”. A resposta tem que ser dada no prazo de 15 dias úteis a contar da recepção do relatório da avaliação clínica. O pedido de autorização prévia pode ser indeferido, por exemplo, “se os cuidados de saúde em causa puderem ser prestados em Portugal num prazo útil fundamentado do ponto de vista clínico, tendo em conta o estado de saúde e a evolução provável da doença do doente”, refere o diploma. Já o direito ao reembolso das despesas que não se encontrem sujeitas a autorização prévia pressupõe a existência de uma avaliação prévia por um médico de medicina geral e familiar.

“O Estado receou que a despesa fosse muito alta”, nota Adalberto Fernandes. Em suma, considera que a directiva vai ter muito pouco impacto”. A directiva prevê 30 dias para a regulamentação, que deverá identificar os cuidados sujeitos a autorização prévia.

Mas o ex-presidente da Entidade Reguladora da Saúde, Álvaro Almeida, deixa uma nota de optimismo: acredita que haverá poucos portugueses a tratar-se no exterior mas que a directiva pode ter “um efeito indirecto”. Se, como prevê, a responsabilidade financeira destes cuidados fora de Portugal couber aos hospitais de referência do doente, estes terão todo o interesse que os cidadãos não vão para fora. Acredita que a directiva pode ser usada “como forma de pressão, obrigando os hospitais a serem capazes de responder aos pedidos”, reduzindo assim as listas de espera. Álvaro Almeida diz que é verdade que tem de haver uma autorização prévia mas esta tem de ser dada, “a não ser que haja boas razões”. O professor lembra uma situação em Inglaterra em que pode ser feito um paralelismo: deu-se a possibilidade aos cidadãos de escolherem ir tratar-se ao privado quando não havia resposta no público. Em termos práticos, só cerca de 10% o fizeram mas a grande vantagem é que, confrontados com a possibilidade de terem que arcar com os custos, os hospitais públicos aceleraram.

A Associação Portuguesa de Hospitalização Privada diz, em comunicado, que vê “com desilusão a transcrição da directiva comunitária que lhe deu origem, que poderia ser o preâmbulo de uma livre circulação de doentes no espaço europeu.” O presidente desta associação, Artur Osório Araújo, diz que as autorizações prévias exigidas “além de serem ferozmente restritivas, são contraditórias, pois aceitam a liberdade de escolha do doente na sua deslocação ao estrangeiro quando em Portugal essa liberdade é negada no acesso aos hospitais privados portugueses, alguns dotados de tecnologia única no país". 

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