Israel e Gaza: resposta a um conselheiro político

Não confundamos: criticar governo e militares israelitas não significa atacar todos os israelitas. E menos ainda significa ser antissemita e atacar todos os judeus, como agora se tornou obsessão dizer.

Um “conselheiro político da Embaixada de Israel” em Lisboa queixou-se no PÚBLICO de 26 de julho do artigo que escrevi sobre “Gaza, os cinismo e os mortos”.

1. O conselheiro político israelita quis distinguir em mim o “cidadão” do “historiador”. O leitor sabe bem que não pretendo fazer investigação histórica enquanto tal quando escrevo no PÚBLICO. Para tal não fui convidado. Mas, ao escrever no PÚBLICO, faço-o tanto como cidadão como quanto historiador: o primeiro nunca se contrapõe ao segundo.

2. Como cidadão e como historiador que reagi contra esta tentativa de “lavagem da memória” que “tem a ver com aquilo que os exércitos e os governos”, como o israelita, “querem que acreditemos – ou esqueçamos – que estão a fazer” (Robert Fisk, Expresso, 26.7.2014). Escolhi uma fonte independente e respeitada (que o sr. Lior Keinan nunca referiu e, portanto, nunca desmentiu) que são os relatórios anuais da Aministia Internacional (AI). As avaliações dos seus observadores não se deduzem de informações de exércitos, governos ou movimentos armados. Um conselheiro político pode não entender por que um historiador (ou um jornalista) usa fontes destas. Mas, justamente, eu não sou um conselheiro político.

3. O sr. Lior Keinan diz que a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados do Próximo Oriente (UNRWA) “encontrou provas do uso da população civil de Gaza como escudo humano pelo Hamas”. É curioso: a página oficial da UNRWA nada diz nesse sentido. Nada! Pelo contrário, denuncia-se o ataque à Escola Básica de Beit Hanoun, da UNRWA, no dia 24, “que causou a morte e ferimentos em diversos civis palestinianos que tinham procurado refúgio em instalações da ONU”, depois de a UNRWA “ter tentado negociar com o Exército israelita uma pausa nos combates e a garantia de um corredor seguro para transferir pessoal e refugiados para instalações mais seguras. A resposta a esse pedido nunca chegou à UNRWA”. No dia 22, outra escola foi bombardeada pelos israelitas. A sua “localização e o facto de albergar refugiados foi formalmente comunicado a Israel em três ocasiões. (…) Pedimos já às autoridades israelitas que fizessem imediatamente uma investigação detalhada.” O que faz o Exército israelita nestas situações? “A impunidade permanece a norma para os soldados e os membros da polícia e das demais forças de segurança, bem como para os colonos israelitas autores de atentados graves aos direitos fundamentais dos palestinianos, nomeadamente de homicídios ilegais.” (Relatório Anual 2010)

4. Um conselheiro político diplomático, ao escrever num jornal em representação de um Estado em guerra, é suposto fazer o que o sr. Lior Keinan fez: propaganda. Essa é a sua função: denegrir todos aqueles que produzam opinião e informação contrária às teses do Estado que representa. É para isso que foi contratado. Espero que nos seus relatórios internos sobre opinião pública portuguesa faça melhor trabalho do que este texto, adequado a páginas de propaganda como a do Israel em Portugal, “organização governamental dedicada a promover as relações diplomáticas, económicas e de amizade entre Israel e Portugal”. Os comentários a este texto são um chorrilho de insultos e apelos ao “esmagamento” da “escumalha” de que, pelos vistos, eu farei parte.

5. Não confundamos: criticar governo e militares israelitas não significa atacar todos os israelitas. E menos ainda significa ser antissemita e atacar todos os judeus, como agora se tornou obsessão dizer. Essa chantagem não a aceito eu, nem aceitam, de resto, milhões de judeus de todo o mundo, incluídos muitos israelitas. Eran Efrati, veterano do Exército de Israel, de família residente em Jerusalém há sete gerações, diz publicamente: “O que tenho visto nas últimas semanas em Israel ultrapassa tudo quanto testemunhei na minha vida: (…) O ambiente aqui em Jerusalém revela um nível de ódio e de racismo na sociedade israelita que (…) não são produto de um pequeno número de extremistas, mas o resultado de um sistema de racismo institucionalizado, uma campanha orquestrada pelo Estado para desumanizar o inimigo e uma ocupação militar duradoura.”

O conselheiro político da Embaixada de Israel em Lisboa e os seus colegas por esse mundo fora, se continuarem empenhados em contrariar a repulsa que uma grande parte do mundo sente pela deriva racista, expansionista e colonialista em que caiu o Governo de Israel desde há, pelo menos, 15 anos, vão ter muito trabalho pela frente...

Historiador, Universidade do Porto

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