A Reforma do IRS: entre o princípio do prazer e o princípio da realidade

Foi divulgado o Anteprojecto da Reforma do IRS – Uma reforma do IRS orientada para a simplificação, a família e a mobilidade social. A Comissão para a Reforma do IRS, que fez um trabalho meritório, atendendo ao curto espaço de tempo disponível, irá concluir os seus trabalhos em 30 de Setembro, antes ainda da proposta de Orçamento para 2015. Não é possível analisar aqui todas as alterações propostas. Irei assim cingir-me aos aspectos que considero mais relevantes, começando por três observações.

Primeira: a Comissão preocupou-se exaustivamente em salientar a natureza “eminentemente técnica” do trabalho e em frisar a sua autonomia em relação à esfera política. Mas, sendo inegável a mediação técnica em qualquer política fiscal, essa dimensão não pode ocultar a dimensão política da proposta. E esta resulta, além da própria composição da comissão, dos objectivos do anteprojecto serem pré-definidos por despacho governamental, do facto de a reforma do IRC (ideologicamente muito marcada) ter condicionado as disponibilidades financeiras para realizar uma reforma consistente do IRS e ainda da forma como é legitimada a evolução recente do IRS em nome de um discutível “princípio da equidade social na austeridade”, posto sucessivamente em causa pelo Tribunal Constitucional.

Assim, a referência à natureza técnica do estudo permite apresentar como recomendações ao poder político algumas das questões mais candentes da reforma do IRS, como a da revisão dos escalões e a da eliminação programada das chamadas “sobretaxa” do IRS e “taxa adicional de solidariedade” que ficam “a aguardar melhor prova”, a que acresce a da manutenção de vários tipos de taxas de imposto.

Segunda: ao contrário do que decorre do despacho de constituição da comissão, o anteprojecto não visa o fomento da mobilidade social (a mobilidade social, se ascendente, implicaria uma redefinição da progressividade do imposto, eventualmente acompanhada da introdução de um imposto negativo). Visa sim conseguir uma maior mobilidade do factor trabalho, o que é manifestamente outra coisa.

Terceira: o estudo é omisso em relação à quantificação da despesa fiscal inerente às propostas. Com excepção da despesa prevista com a introdução do quociente familiar em vez do quociente conjugal (velha reivindicação do CDS-PP, cujo custo, sem compensações, é avaliado em 301,6 milhões de euros), outras medidas susceptíveis de conduzir a perdas de receita ou quebras de tesouraria, como o alargamento do âmbito dos vales sociais de educação, a dedução global de valor fixo ou mesmo as tabelas de retenção na fonte, não apresentam qualquer estimativa dessa perda. O que suscita uma dúvida: tem o decisor político em mente reduzir os níveis de tributação em IRS ou apenas apresentar um futuro programa eleitoral? Ou espera poder usar para esse efeito recursos financeiros propiciados pela Reforma da Fiscalidade Verde?

Dito isto, acrescento que há muitas medidas no anteprojecto que são razoavelmente consensuais, em parte inspiradas em outros estudos ou relatórios efectuados nos últimos 15 anos. É o caso da tributação separada dos membros do agregado familiar, com opção pela tributação conjunta dos cônjuges (que resolve a inconstitucionalidade existente na discriminação negativa do casamento em relação à união de facto), da aproximação dos regimes das categorias de rendimento A e H, bem como da reformulação das categorias E e G, da maioria das propostas em sede de tributação internacional ou que visam tornar compatível o direito nacional com o europeu e, bem assim, da generalidade das propostas de simplificação procedimental e processual, desde que salvaguardados aspectos ligados ao controlo do sistema.

Embora não sendo uma medida consensual, longe disso, poder-se-á compreender a opção pelo aprofundamento da semi-dualização do imposto, ressalvadas que sejam, como se intenta fazer (de modo suficiente?) as questões de constitucionalidade que inevitavelmente se irão levantar. Estamos perante uma estratégia de concorrência fiscal defensiva e de concorrência por imitação que se inspira em medidas tomadas por outras jurisdições (como as nórdicas ou a espanhola), tendo em vista assegurar alguma tributação do mais móvel factor de produção, o capital. Representa, aliás, o prolongamento de uma tendência latente no IRS, a que se tenta dar maior coerência e racionalidade, limitando as formas de planeamento fiscal.

Muito mais questionável é, porém, a medida mais emblemática do anteprojecto: a introdução do quociente familiar. A questão da baixa taxa de natalidade, problema grave, prende-se hoje não só com factores económicos (desemprego, trabalho precário, habitação cara) como também com factores culturais (primado dos valores pós-materialistas), adoptados por estratos sociais de maior rendimento. É muito duvidoso que se façam mais filhos com reduções de impostos a famílias numerosas. Muitas destas famílias não têm hoje o perfil das famílias numerosas de outrora, em que os filhos eram a segurança social dos pais. Hoje, uma medida deste género, além de cara, arrisca-se a ser um bónus, mais do que um verdadeiro incentivo à natalidade. Não significa isto que a fiscalidade não possa ter algum papel a desempenhar (por via das deduções à colecta ou mesmo permitindo um quociente laboral, que divida o rendimento global do agregado pelo número de membros que contribuam com rendimentos sujeitos a taxas gerais de imposto). Mas não parece ser o instrumento certo para apoiar a natalidade ou as famílias numerosas necessitadas. Aí as políticas do lado da despesa são, a meu ver, muito mais justas e eficazes.

Doutor em Direito (Louvain-la-Neuve), professor associado da UAL e ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (XIII Governo)

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