Equívocos sobre a designação dos comissários

1. Embora obnubilado, a nível nacional, pela crise do Grupo Espírito Santo e, a nível internacional, pela crise ucraniana, reina para aí o maior frenesim acerca da designação do próximo comissário português. As pretensas candidatas e os supostos candidatos fazem campanhas de promoção e desfazem-se em declarações na imprensa e nas redes sociais. Todo esse rebuliço tem ao menos uma vantagem: nunca se deu tanta atenção à nomeação pelo Governo do comissário que nos cabe. A agenda europeia vai, pois, ganhando em espaço, em visibilidade e também em escrutínio.

Entretanto, e também por causa desse trote de corrida, vão-se acumulando erros, imprecisões e até algumas manipulações sobre os critérios que devem nortear a escolha dos comissários.

2. A designação do comissário é uma competência de cada executivo nacional, geralmente exercida em estreita cooperação com o presidente da Comissão. E desse exercício de consultas mútuas há-de resultar um colégio de comissários que será sujeito a um voto em bloco no Parlamento Europeu. Os comissários têm normalmente uma pasta, que representa o seu conjunto de atribuições, e que é escolhida pelo presidente da Comissão (podendo este, de resto, alterar a dita pasta a qualquer momento). A selecção do pelouro em causa é articulada entre os governos nacionais e o presidente da Comissão, por forma a adequar a indicação de um nome à pasta ou adequar a pasta ao nome indicado.

O processo de formação da Comissão configura, portanto, um processo extremamente complexo e delicado. A Comissão, sendo um corpo independente que prossegue unicamente o interesse geral da União, reflecte na sua formação e composição todas as tensões próprias de uma realidade tão múltipla como a União Europeia.

3. Ela traduz um equilíbrio entre as pulsões nacionais e o interesse global europeu. A circunstância de se continuar a exigir – mesmo fora do intencionado pelo Tratado de Lisboa – o cumprimento do cânon “um país, um comissário” é disso a melhor prova. Ao que acresce o facto de a competência para a indicação residir quase inteiramente no executivo nacional, deixando pouca autonomia e margem ao presidente da Comissão.

Implica também um balanço entre a correlação de forças políticas existentes no Conselho e a correlação de forças políticas subsistentes no Parlamento. A Comissão deve ser capaz de corresponder a uma maioria parlamentar, até agora sempre resultante de acordos mais ou menos estáveis de coligação. Mas, dada a sua íntima relação com o Conselho, não pode ser desvalorizada a representação das forças que em cada Estado exercem o poder. Ora, não se afigura nada fácil compatibilizar a maioria política do Conselho com a maioria política do Parlamento.

Esta ideia de equilíbrio, especialmente no que à distribuição dos pelouros diz respeito, tem ainda de se estender às dicotomias “grandes-pequenos”, “contribuintes líquidos-países da coesão”, “membros antigos-membros recentes”, “países ocidentais-países do Leste” e “Estados do Norte-Estados do Sul”. E tem naturalmente de dar tradução à grande exigência do momento, que é do balanço de género, procurando reduzir a assimetria entre o número de homens e de mulheres.

É evidente que uma parte destes equilíbrios pode ser obtida através de outras instituições, órgãos ou postos da União (ou até de outros postos internacionais), mas em todo caso o grau de complexidade remanescente continua ser elevadíssimo.

4. É justamente em face desta complexidade que me tem surpreendido o modo simplista como tantos e tão qualificados têm encarado o processo de escolha do comissário português. Tirando talvez os Estados mais influentes (e que se resumem a três ou quatro), a indicação dos comissários resulta da articulação de uma multiplicidade de variáveis tal que as escolhas a operar são tudo menos óbvias. E por isso é estranha esta asserção de uma série de dirigentes socialistas de que o novo comissário ou a nova comissária têm de provir do PS ou da área socialista. Trata-se de um postulado, no mínimo, simplista. Entendamo-nos: nada impede que a escolha venha a recair sobre alguém proveniente dessa área política. Mas assim como nada impede, também nada obriga. E olhando até para os vectores do equilíbrio europeu a fazer, é até bem provável que faça mais sentido recrutar na zona de influência do PPE.

5. O dito postulado socialista assenta em dois argumentos, um muito usado até há um mês e outro mais recente. O mais antigo visa fazer a compensação com a indicação de Durão Barroso em 2009; aí um governo de maioria absoluta socialista escolheu um comissário de centro-direita. Agora seria a vez de ter a moeda de troca. Trata-se de um argumento frustre e frágil, pois procura pôr na sombra que estava em jogo a designação do presidente da Comissão e que só Barroso preenchia as condições para o ser. Curiosamente, o mesmo acaba de se passar com Juncker, que foi designado, apesar de o seu partido não estar no Governo do Luxemburgo. O argumento mais recente é o célebre argumento do resultado das eleições europeias. Há até quem – mais precisamente, uma fonte anónima socialista – invoque um projecto de relatório por mim subscrito para fundamentar essa solução. Mas essa tese não resiste à leitura desse projecto, em que se defende que os resultados das eleições – europeias e não só – são mais um, mas apenas mais um, factor a ter em consideração. E não resiste a dois segundos de reflexão. Quem assim pensar está naturalmente a dizer que o comissário francês tem de pertencer à Frente Nacional e que o comissário inglês deve sair das fileiras do UKIP. E está a desconsiderar por completo que a composição da Comissão tem de traduzir a maioria política do Parlamento (com elementos do PPE, dos socialistas e dos liberais, mas em que o PPE é o maior partido) e tem de reflectir também a distribuição partidária dos governos nacionais.

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