Literatura portuguesa de parabéns

Os exames (1.ª e 2.ª chamadas) de Português (9.º ano) esqueceram as obras de leitura obrigatória, a epopeia de Camões e um auto de Gil Vicente.

Não faz muito que demos passos em volta do caso Herberto, paradigma do país saloio em que vivemos, a começar pelos rebarbativos talentos que mitificam a sua existência nos exílios da imortalidade. Herberto escolheu entrar nas trevas, o que, paradoxalmente, lhe confere maior visibilidade do que supõe – aquilo que se encripta torna-se mais facilmente evocável, senão idolatrável. E, ainda que se diga “defendido contra as vertigens da dissipação”, o facto é que, na sua relação com a História, não controla o processo implacável da distribuição do livro, isto é, o resultado da sua própria criação.

Se, já com Servidões, o autor permitiu a servidão ao destino escandaloso e caprichoso da visão editorial que transformou a obra em fetiche e o leitor no seu trágico refém (também eu fiz parte daqueles que não encetaram a corrida à livraria mas receberam com moderada benevolência o “já esgotou” da ordem), com A Morte Sem Mestre esvaneceu-se, do meu ponto de vista, tudo aquilo que generosamente ligava Herberto “às fontes naturais do mundo” e o metamorfoseou, contra sua vontade, num vácuo fantasma da feira das vaidades, permeável a todo o tipo de especulações. Uma só palavra de Herberto Helder, se dela ainda fosse capaz, esmagaria o brilho das falsas pedrarias do circuito livreiro.

Nada contra o panteónico atributo a Sophia e a sua famosa “unanimidade” (seja lá o que isso for), ainda que mereça reflexão aferir critérios de selecção, lugar do arbítrio, silêncio de omissão e cedência à aporia – como estarão cotados Eugénio, António Ramos Rosa, Torga, Carlos de Oliveira, Cardoso Pires, O’ Neill (mesmo que com estrondosa gargalhada), Jorge de Sena (passe o paradoxo), David Mourão-Ferreira ou José Gomes Ferreira na bolsa de valores do luso Panteão? O que não deixa, porém, de constituir perplexidade é a declaração de Miguel Sousa Tavares sobre a escritora. Segundo ele, Sophia é uma autora “que não precisa nem de crítica nem de explicações”. Conhecemos o “complexo da crítica” a que se referiu Eduardo Lourenço, instituição que “sempre esteve desarmada diante da obra, [e que] foi sempre um corredor atrasado e impotente”. É, todavia, a crítica que legitima a obra, por mais que esta transporte no seu corpo “a única luz capaz de distinguir os vivos e os mortos” (E. Lourenço, O Canto do Signo). Porque não há obra sem leitor por mais autotélica que se queira, nem obra sem faculdade de renúncia para se submeter ao cepo. Aliás, não há obra incólume por natureza. Nem mesmo a da “unânime” Sophia.

Os exames (1.ª e 2.ª chamadas) de Português (9.º ano) esqueceram as obras de leitura obrigatória, a epopeia de Camões e um auto de Gil Vicente. Ora, neste ano decisivo, é comum os professores despenderem a quase totalidade do ano com os dois autores. Há uma obra narrativa (com frequência um conto de Eça) que passa também pelo escrutínio dos docentes. Mas nada. Em vez disso, uma entrevista ao grande Mário de Carvalho, um trecho de Machado de Assis, um texto de Gonçalo Cadilhe e outro trecho de Jorge de Sena. Nada a opor, não fosse o esquecimento do essencial. À saída da 1.ª chamada, os alunos diziam sentir-se defraudados, em “boa gíria”.

A juntar à pertinente preocupação de Maria Edviges Ferreira (PÚBLICO, 17 de Julho), talvez se possa reiniciar um diálogo sobre o que é canónico naquilo que, polidamente, se chama agora “Educação Literária”. Começando, por exemplo, por tentar perceber o que significa “unanimidade” (trinómio quantidade de leitores/qualidade literária/reserva moral (vulgo pudor)?). E, já agora, o que se entende por poesia, sobretudo poesia em contexto escolar, protegida, à boa maneira puritana, de todos os seus desvarios demoníacos.

Professor

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