Paisagens de melancolia

Quando, em 1998, "Buffalo 66" não foi seleccionado para o Festival de Cannes, Vincent Gallo chegou à cólera. E nem a aclamação posterior dessa sua estreia na realização apagou o efeito da desilusão. Mais de meia década depois e à beira da estreia no mesmo festival de "The Brown Bunny", Gallo dizia ao diário francês "Libération": "Há uma hipótese num milhão de eu ganhar qualquer coisa em Cannes. Se isso acontecesse, parecer-me-ia de tal forma bizarro que provavelmente entrava em depressão. Seria um choque enorme em relação à minha realidade quotidiana. Sou um perdedor nato."

Deixando de parte a questão sobre se é ou não um "perdedor nato" - isso obrigava a um mergulho na truculência da sua elíptica fígura-pública (e se calhar privada) -, o que o terá levado ao prognóstico? Cautela, lucidez ou cinismo? Provavelmente lucidez.

Se para o "mainstream", sobretudo norte-americano, "Buffalo 66" já era criatura estranha, "The Brown Bunny" foi mais longe. E se o músico-pintor-actor-argumentista-realizador pode não ter previsto a total amplitude nem a violência da reacção de recusa que a obra suscitou (era difícil adivinhar tão apaixonado ódio), também não é um inocente que pudesse ter alimentado expectativas irrealistas. Pelo contrário.

Ainda na mesma entrevista dizia: "Basta dois parvalhões a desancar em mim em revistas [durante o festival] para que o meu filme não seja nunca projectado nos Estados Unidos." Gallo em esplendor profético.

Em Cannes o filme teve direito a pateadas com a maioria das críticas a condizer - mesmo na Europa, Portugal é dos poucos países a exibirem "The Brown Bunny". Optou-se por justificar tal reacção pela repulsa, hipócrita, com um "momento-choque" do filme: uma cena de sexo oral. Mas foi escape fácil perante a dificuldade de relacionamento com a longa e silenciosa travessia da América que antecede essa sequência, contornos de um "road-movie" que Gallo torna numa obra profundamente melancólica, mais tradução plástica de estares de alma do que procura narrativa.

Sim. A cena é explícita. Está ali, em primeiro plano e durante muitos minutos. É impossivel ignorar as veias, a saliva e a cara distorcida de Cloë Sevigny, as mãos de Gallo a empurrar a sua cabeça enquanto lhe fala. Mas não tem nada a ver com obscenidade, tem a ver com dor. Dor de existir encerrado numa pele com uma história marcada pela perda, "marcada por tudo o que torna impossível o acesso a um amor luminoso, a uma presença completa no mundo" (a tradutora Évelyne Piellier dizia-o sobre a última peça da dramaturga britânica Sarah Kane). Com um fundo romântico importante, todo o filme e o seu desamparo têm a ver com isso: dor e perda (de um amor, de uma família, de referências...). Mas é preciso chegar ao fim para o saber. Portanto, não é drama, nem melodrama, e em vez de se filiar na tradição do cinema, "The Brown Bunny" vai beber mais ao fazer de certa pintura. Como se, para se exprimir, Gallo tivesse ido filmando, e do fazer progressivo do filme tivessem surgido progressivas formulações, e delas a resolução final.

Ao longo das quase duas horas de filme, o realizador torna, de resto, a pintura questão explícita. Pontualmente a acção suspende-se em verdadeiros quadros - um pouco a inversão da forma como vários artistas plásticos que usam o vídeo trabalham o plano fixo: como uma tela em movimento.

Gallo já disse claramente que as suas referências "vêm mais do mundo da arte que do cinema". A sua principal "influência" é o pintor Robert Ryman, diz. O minimalismo deste estará em muitos planos, e pode-se desdobrar a lista daqueles cuja obra é convocada, consciente ou inconscientemente: a fotografia de Larry Clark, a alusão a Matthew Barney... Mas é mais interessante a forma como tudo isso surge: numa deslocação característica das artes visuais - no caso, da assimilação dos seus princípios de construcção. A própria utilização do vídeo - com a rugosidade, o grão, a escala dos homens e não dos semi-deuses do cinema - testemunha essa permeabilidade entre áreas.

Não é nada que Gallo tenha inaugurado. Quando em 1998 Gus van Sant estreou o seu "Psycho" abriu-se frente aos olhos do grande público internacional o momento paradigmático da miscigenação contemporânea entre cinema e artes plásticas. Com esse monumental palimpsesto, o realizador não assinava uma "actualização", muito menos um "remake"; apropriava-se, com visibilidade inaudita, em película e para o circuito comercial, de um objecto alheio e tornava-o seu.

Curiosamente, apenas cinco anos antes, do outro lado da trincheira, nas artes plásticas, o britânico Douglas Gordon apresentara pela primeira vez "24 Hour Psycho" que partia do mesmo clássico de Hitchcock. Com a projecção do original "desacelerada", a passar apenas dois "frames" por segundo, Gordon transformou o dia em que Norman Bates recebe no seu motel e assassina Marion Crane numa experiência de 24 horas - e assim estabeleceu a referência emblemática de qualquer discussão crítica em torno de uma nova fluidez entre o vídeo e o cinema nas artes visuais. Se "The Brown Bunny" fosse projectado nos mesmos circuitos que "24 Hours Psycho", tornar-se-ía evidente aquilo que formalmente é: uma espécie de "loop" imperfeito cujo fim pode ser um princípio e cujo princípio - uns 10 minutos de uma competição de motas em pista circular - é a sua declaração de circularidade.

dancing with myself.

Tóquio, 1998. Numa entrevista a propósito do seu filme "Hana-Bi", o japonês Takeshi Kitano, encolhido numa poltrona, e no seu tom tímido e cheio de tiques, explicava que, na sua vida, age como se manipulasse duas marionetas: Beat Takeshi (nome que assume para a persona do "entertainer" televisivo por que é conhecido) e Takeshi Kitano (nome com que assina as obras cinematográficas por que é reconhecido no ocidente).

Num pé de dança docemente esquizóide (e com auto-ironia) contava que perguntava às raparigas com quem tem encontros amorosos com qual é que preferem estar, Beat ou Kitano. Depois, encarna-o - "Só quando tenho sexo é que já não sei bem [qual sou]". Em relação aos seus filmes, pelo contrário, não tem dúvidas: são "a síntese". São a sua experiência televisiva, a sua música, a sua pintura e as suas histórias (biográficas e ficcionais) num só produto.

Com Gallo é também assim. Mas com ele ninguém sabe nunca com quem está.

Nova Iorque, 1998. Na noite de 5 de Agosto, cinco minutos depois da uma da madrugada, um Vincent Gallo pós-"Buffalo 66" põe-se a escrever a introdução (pomposamente apelidada de "ensaio") da sua fotobiografia, "Vincent Gallo 1962-1999". Por entre grandes e pequenos ódios, ressentimentos vários e muito narcisismo, um momento particular soa a levantar do véu. É quando diz que pretende filmar um documentário intitulado "Yeah, You Know Me": "Vou fazer a cem miúdas a mesma pergunta sobre mim e filmar as suas cem completamente diferentes respostas", escreve.

Nascido em Buffalo, Estado de Nova Iorque, em 1962, foi músico, modelo e pintor antes de ser reconhecido como actor e chegar à realização. Nos anos 80, década da sua amizade com o escritor William Burroughs, em que tocava nos "Gray" e calcorreava a Bowery Street, Gallo tinha a mesma galerista que outro dos seus amigos, o pintor (e também membro dos "Gray") Jean-Michel Basquiat.

Já nos anos 90, deixou de pintar. Mas o seu corpo continua a carregar uma história.

Arrisque-se: "The Brown Bunny" está para Gallo como "Hanna-Bi" para Kitano. Só que se de um lado se convoca a "naïveté" e uma ternura agridoce com que de forma sublime se embala o mundo, mesmo nos mais sanguinários massacres "yakuza", do outro responde-se com uma valsa musicada por Billy Idol de que todos se demitiram, deixando Gallo numa espécie de "Dancing With Myself".

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