Documentário de Hitchcock sobre o Holocausto será visto pela primeira vez 70 anos depois

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Poucos sabem que o realizador de Vertigo — A Mulher que Viveu Duas Vezes e de Os Pássaros fez um filme sobre os campos de extermínio nazis. Memory of the Camps, o dito filme, vai ser exibido no fim do ano, provavelmente com outro nome, antes de chegar à televisão britânica em 2015. Mas chamar-lhe “um filme de Alfred Hitchcock” talvez seja um exagero, defende Toby Haggith, conservador do departamento de pesquisa do Imperial War Museum, em Londres, ao detalhar a operação que deverá culminar com a estreia deste projecto que esteve décadas esquecido, no ano em que se celebra o 70.º aniversário da libertação da Europa. “Exagero” porque não se sabe qual foi o verdadeiro papel de Hitchcock no filme — é mais fácil acreditar que foi um consultor que acompanhou atentamente os trabalhos do que propriamente um realizador —, mas certo é que as imagens recolhidas pelos operadores de câmara dos exércitos britânico e soviético à chegada aos campos o afectaram profundamente e acabaram por marcar o seu cinema, sobretudo o que nele diz respeito à representação do horror e da violência. Diz-se, aliás, que depois de ver o material destes repórteres-militares, Hitchcock ficou tão chocado que esteve uma semana longe dos estúdios.

Aparentemente, o realizador, que se associou ao documentário a pedido do seu amigo e mecenas Sidney Bernstein, não foi ouvido quando se decidiu que exibir o filme era politicamente imprudente. As filmagens foram feitas porque, “assim que descobriram os campos, os americanos e os britânicos quiseram libertar as imagens para levar os alemães a aceitarem as suas responsabilidades nas atrocidades que ali tinham sido cometidas”, explicou Haggith ao jornal britânico The Independent, mas, à data em que finalmente ficaram prontas para serem divulgadas, temeu-se que viessem a comprometer os esforços de reconstrução e reconciliação do pós-guerra.

Cinco das seis bobinas do filme foram, então, depositadas nos arquivos do Imperial War Museum e virtualmente esquecidas. Uma delas foi redescoberta no início dos anos 1980 e o filme, numa versão incompleta e de má qualidade acabou por passar no Festival de Berlim em 1984 e no canal americano PBS pouco depois. Agora o documentário está prestes a ser visto na versão que Hitchcock, Bernstein e outros colaboradores pretendiam exibir; com base no mesmo material, que está ainda em fase final de restauro com recurso a tecnologia digital, será feito um segundo documentário, Night Will Fall, com o produtor André Singer a dirigir e o realizador Stephen Frears como consultor. Garantem os técnicos de conservação e restauro que o trabalho dos operadores de câmara no terreno, sem qualquer orientação de um realizador, foi “excepcional”, recolhendo imagens profundamente perturbadoras, capazes de criar um documento histórico que é, segundo Haggith, “brilhante” e “sofisticado”. A narração que o acompanha adverte o público para a “câmara de horrores” em que está prestes a entrar, marcada por pilhas de corpos seminus junto a valas comuns, algo que nos habituámos a ver na pintura antiga que evoca o inferno e o purgatório. Como reagirão as audiências contemporâneas não se sabe ainda — é preciso esperar.

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