A memória da ditadura e da Revolução

Uma sondagem do Instituto de Ciências Sociais (ICS) permite concluir que “o 25 de Abril é [para os portugueses] um símbolo político positivo que democratizou o país, o principal marco da nossa história” (PÚBLICO, 15.4.2014).

Nela, 79% dos portugueses dizem que a "nossa transição para a democracia”, pela via revolucionaria, “é motivo de orgulho". Realizada no momento mais depressivo da vida portuguesa desde o 25 de Abril de 1974, em que outros estudos confirmam a profunda deceção dos portugueses com a democracia que têm, ela permite concluir que esta deceção é independente da perceção da Revolução dos Cravos. Por outras palavras, do que nos queixamos é daquilo em que se transformou o regime que o 25 de Abril permitiu criar, e não do 25 de Abril ou da democracia em si mesma – o que parece dar razão àqueles que, como os capitães de Abril, há muito denunciam a desnaturalização do projeto e das esperanças de Abril. É isso que querem dizer centenas de milhar de portugueses que, nas ruas deste país, cantam a Grândola contra a troika, Passos, a austeridade, sem por isso clamarem por um novo Salazar: querem outro 25 de Abril, de novo, querem fazer com que uma verdadeira democracia seja de novo possível! Quando a jornalista Natália Faria perguntou a Deolinda Araújo, operária têxtil, 54 anos, a trabalhar desde os 11, o que achava ela da possibilidade de aumento do salário mínimo que ganha há décadas, e com o qual “não se vive: sobrevive-se”, esta respondeu-lhe: “Sabe o que eu queria, menina? Outro 25 de Abril” (PÚBLICO, 13.4.2014).

Parece-me politicamente significativo o reflexo que o descontentamento social está a ter na forma como coletivamente estamos a lembrar e a reconstruir a memória da ditadura e da Revolução neste seu 40º aniversário. Esta é a diferença entre este e anteriores aniversários do 25 de Abril. Em períodos de recessão económica e de regressão dos direitos sociais, como ocorreu no 10º (1984), 20º (1994) e 30º (2004) aniversários, os estudos de opinião mostravam que os portugueses tendiam a contaminar a sua recordação do passado ditatorial com a crise de confiança na qualidade do sistema de representação democrática; isto é: a crise socioeconómica produzia desilusão social face ao regime democrático e uma revalorização das certezas autoritárias do salazarismo. Aparentemente, não é o que sucede hoje.

A memória da ditadura, como sucede com todas as leituras de um passado relevante, acompanhou sempre a evolução da sociedade. O impulso revolucionário de 1974-76 abriu caminho ao desmantelamento do Estado autoritário e à libertação da memória da opressão, da brutalidade com que a GNR e a PIDE tratou camponeses e operários em greve, do Tarrafal e da sanha persecutória contra os clandestinos comunistas, os anarquistas, os republicanos, os estudantes das novas esquerdas radicais, do assassinato de Delgado, dos massacres das populações coloniais (Bafatá, Pidjiguiti, Mueda, Cassange, Norte de Angola, …). A derrota do projeto revolucionário trouxe consigo o silenciamento e a desvalorização política e social da memória do antifascismo. Até à crise final do cavaquismo, a direita, que nunca quis discutir o legado da ditadura, tentou impor uma memória caricaturada da Revolução para tentar relativizar a opressão salazarista e as consequências da Guerra Colonial. Nascia o revisionismo histórico: como Cavaco chegou a dizer em 1986, os comunistas haviam tentado impor em Portugal um “sistema realmente totalitário”, bem pior que as “ditaduras de direita” como a de Salazar, ”apenas violadoras das liberdades públicas”. Muito próximo do que dizia Durão Barroso, há dias, elogiando a escola da ditadura, na qual, "apesar de algumas liberdades cortadas, havia uma cultura de mérito, exigência, rigor, disciplina e trabalho" (DN, 12.4.2014). Foi, também, então que se procedeu à sobreposição de memórias e representações daqueles que se definiram como “vítimas da descolonização”, ofuscando completamente as vítimas do colonialismo e da guerra. O cúmulo foi atingido com as pensões aos pides que haviam recebido de Cavaco os louvores pelo seu papel na guerra em África (1992) e o convite a Óscar Cardoso para defender o caráter “científico” da PIDE na SIC, no 20º aniversário do 25 de Abril, que suscitou uma verdadeira revolta da memória e, finalmente, o confronto aberto de memórias absolutamente contrapostas sobre ditadura e Revolução. Desde então, a esquerda tem assumido abertamente, e sem complexos, a memória da Revolução e da legitimidade emancipatória do 25 de Abril, e reagiu perante a primeira tentativa da direita de dele se apropriar, consagrada no slogan oficial do governo Durão Barroso, em 2004, de que “Abril é evolução”. E não: fora “Revolução”!

Se hoje uma parte dos dirigentes da direita (Passos, Mota Amaral, Assunção Esteves sim, Cavaco e o CDS nunca) passou a adotar o cravo vermelho na lapela nas comemorações oficiais do 25 de Abril é porque procura evitar um combate que lançou logo a seguir à Revolução, mas que hoje, em plena crise, lhe é desfavorável. Ela sabe bem a quem os portugueses associam o regresso à pobreza e à emigração. Nunca como hoje a memória da ditadura e a da Revolução lhe foi tão incómoda.

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