Análise: que vai na cabeça de Vladimir Putin?

O Presidente russo "brinca com o fogo", mas os seus objectivos não são claros. Putin está refém da Crimeia, mas o Ocidente precisa de compreender que demonizar o líder russo não passa de um álibi para a ausência de uma política para enfrentar esta crise.

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Alexei Druzhinin/Reuters

1. Um momento diplomático de “desescalada” não deve ser tomado como uma aproximação da resolução do conflito. É apenas um “arrefecimento” enquanto os actores continuam a mover as suas pedras. Há uma questão prévia a todas as movimentações: qual é o objectivo da ocupação da Crimeia por Moscovo? Tudo se resume, diz um analista, a uma simples pergunta cuja resposta não é óbvia: “A visão de Vladimir Putin é sobretudo ofensiva ou defensiva?” A resposta condiciona tanto as reacções ocidentais como o futuro da ordem mundial.

Visa Putin compensar a perda de Ucrânia pela anexação da Crimeia? Seria uma troca estrategicamente desvantajosa, apesar de a Crimeia ser a chave do mar Negro. Visa colocar Moscovo numa posição de força para uma grande negociação sobre a Ucrânia? É a hipótese mais credível, significando uma estratégia indirecta para recuperar influência na Ucrânia e reafirmar o seu estatuto internacional.

Ou, na hipótese extrema, traduz um projecto de “reconquista” ou de divisão da Ucrânia, o que, por sua vez, implicaria uma radicalização perante os vizinhos ex-soviéticos. A Moldávia poderia ser o próximo alvo. Significaria recusar — como antes a União Soviética — os princípios da soberania nacional e da intangibilidade das fronteiras, tentando restaurar a sua antiga “esfera de influência”. Seria a aposta numa nova Guerra Fria.

2. Todo este processo foi composto por ciclos de surpresa e reacção. Em Novembro, Moscovo marcou pontos ao levar Viktor Ianukovich a desistir da adesão da Ucrânia à Parceria Oriental da UE. Esta foi apanhada de surpresa. Outra surpresa logo se seguiu: a mobilização “Euro-Maidan”, que constituiu uma derrota e uma ameaça para Moscovo. A Europa descobria que a sua fraqueza política era compensada por uma magnética atracção sobre os ucranianos. O desfecho foi rápido: fuga e destituição de Ianukovich a 22 de Fevereiro. Acto seguinte: numa semana, Moscovo “perdeu a Ucrânia e recuperou a Crimeia”. Kiev e os ocidentais foram, de novo, apanhados de surpresa. É uma situação propícia a espirais de tensão e ameaças.

“Vladimir Putin brinca com o fogo”, diz o analista francês Dominique Moïsi. Por que agiu tão rapidamente? O fracasso em Kiev “destruiu o mito da potência russa”, argumentou o analista alemão Jan Techau. Foi uma humilhação pessoal para Putin e, logo, uma ameaça ao seu próprio poder. Mais: se olharmos para o mapa, a Ucrânia é o elo fundamental para a união aduaneira que ele ambiciona transformar numa futura “União Euro-Asiática”. Sem Ucrânia, esse projecto não tem sentido. Há, por fim, a obsessão russa com a ameaça do Ocidente — a “paranóia do cerco”. A “paranóia” não é exclusiva de Putin, é partilhada por grande parte da elite russa.

3. A Rússia não tem meios para relançar uma nova Guerra Fria. É uma “potência enorme” mas com pés de barro. O que caracteriza a Rússia de Putin é ter optado por uma “competição estratégica” com o Ocidente. Quem mais adverte contra o regresso da Guerra Fria são analistas russos, uns por real temor, outros por razões de propaganda.

De todas as hipóteses de racionalização da ocupação da Crimeia, a mais provável é Putin estar a tentar criar uma nova relação de forças no terreno na perspectiva de uma grande negociação sobre a Ucrânia com os ocidentais.

O analista Thomas Gomart, director do desenvolvimento estratégico no Instituto Francês de Relações Internacionais (IFRI) enuncia três objectivos de Putin. Primeiro, assumir o controlo da Crimeia e criar um facto consumado, mantendo a ambiguidade sobre a Ucrânia. Uma das possíveis saídas seria a “federalização” do país de forma a limitar a independência de Kiev. É uma ideia que a imprensa alemã diz ser bem acolhida por Angela Merkel. De facto, daria a Moscovo um “direito de veto” sobre a política externa ucraniana através da sua influência nas regiões russófonas do Leste. É um exemplo das muitas implicações da “grande negociação”.

Gomart evoca depois a vontade de Moscovo testar a solidariedade ocidental e impor uma “derrota simbólica” a Washington, com escassos meios para contrariar Moscovo na Crimeia. Por isso, uma das questões fundamentais das próximas semanas “reside em manter a coesão ocidental perante o golpe de força e na redefinição de uma política global perante a Rússia”.

Samuel Charap e Keith Darden, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS) de Londres, consideram ser cedo para ter certezas em relação à opção russa. Num primeiro cenário, Moscovo terá reagido a uma derrota que atribui a um “complot ocidental” e que visaria integrar a Ucrânia na NATO e ameaçar as suas bases na Crimeia. Neste caso, terá sido uma “acção reactiva”. Numa segunda grelha de análise, os movimentos militares traduziriam “uma mudança fundamental dos princípios subjacentes à política de expansão territorial agressiva conduzida pela Rússia”. É a hipótese inquietante, com alto risco de levar a um confronto. Se o primeiro cenário for o verdadeiro e “a Rússia não tiver o desígnio de despedaçar a Ucrânia, os ocidentais acabarão por encontrar um terreno de acordo com Moscovo”.

É preciso ter em conta outro factor. Putin está agora refém da Crimeia, olhada pelos russos como “terra russa”. Diz à AFP o analista Alexei Makarkine: “A Rússia foi longe de mais. Se se anunciasse agora que a Crimeia não pode ser incorporada na Rússia, as pessoas não compreenderiam.” Corrobora outro analista russo, Pavel Felgenhauer: “A propaganda assumiu tal dimensão no país que Putin não pode fazer marcha atrás.”

Vários analistas ocidentais, europeus e americanos, criticaram a falta de atenção da UE e dos EUA aos interesses e aos fantasmas russos. Um deles foi Henry Kissinger. Antecipando uma perigosa maratona diplomática, escreve que a Ucrânia deve poder escolher livremente o seu sistema político e as suas associações internacionais mas não pode ser integrada na NATO. A Rússia “tem de aceitar que tentar fazer da Ucrânia um satélite e voltar a mudar as suas fronteiras condena Moscovo a repetir a sua História de ciclos de tensão com a Europa e os Estados Unidos. O Ocidente deve compreender que, para Rússia, a Ucrânia nunca poderá ser um país estrangeiro”. E deixa um recado: “Para o Ocidente, a demonização de Vladimir Putin não é uma política; é o álibi para a falta de uma [política]."

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