Muito mais do que 15 minutos de fama para Gisberta

Depois da estreia em versão curta no Teatro Rápido, Gisberta chega à cidade onde esta história acabou mal

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Uma mãe de vestido branco e chinelos de andar por casa que Eduardo Gaspar escreveu para a actriz Rita Ribeiro Bárbara Raquel Moreira

O telefone toca a milhares de quilómetros do prédio para sempre inabitável – como um lugar onde uma cidade inteira foi verdadeiramente infeliz – onde em Fevereiro de 2006 13 rapazes com menos de 18 anos atiraram para um poço com 15 metros de profundidade o corpo ainda vivo, mas já tão pouco, de Gisberta Salce Júnior. A mãe atende, pede para a senhora “da fala estrangeira” dizer tudo mais devagar, mas não se ouve o que vem a seguir. Já sabemos, mesmo sem ouvir, que o que vem a seguir é a descrição absurdamente exacta da maneira como Gisberta, uma transexual e sem-abrigo brasileira que a sida já quase tinha acabado de destruir, foi assassinada no centro de uma cidade onde chegou a ser verdadeiramente feliz. Mas depois há tudo o que não sabemos – e é aqui que esta história começa.

Há um ano, quando Eduardo Gaspar foi à procura de uma personagem que pudesse aguentar um monólogo de 15 minutos a apresentar no ciclo do Teatro Rápido sobre as mães, os jornais tinham voltado, por dever de efeméride, a escrever sobre o assunto. Nessas notícias, e nas que encontrou depois na Internet, Gisberta era só a vida que tinha tido no Porto, primeiro como estrela em cabarés e boîtes, depois como o fantasma demasiado presente de uma história de violência e homofobia. Nenhum jornal, nenhuma televisão – pelo menos tanto quanto o encenador e dramaturgo brasileiro pôde averiguar – alguma vez entrevistou a mãe que ele foi obrigado a imaginar, uma mãe de vestido branco e chinelos de andar por casa que Eduardo Gaspar escreveu para a actriz Rita Ribeiro e que agora está no Pequeno Auditório do Rivoli, no Porto, a mesma cidade onde Gisberta morreu. Já não na versão curta que em Maio esgotou o Teatro Rápido: Gisberta tem agora muito mais do que apenas 15 minutos de fama e está, sublinha Rita Ribeiro ao PÚBLICO, finalmente em casa: “Para mim o Porto é onde faz sentido apresentar este espectáculo. Tem uma carga emocional muitíssimo mais forte, por ser a cidade onde tudo aconteceu. E esta sala tem o tamanho certo, o tamanho que nos permite voltar à intimidade das sessões inaugurais no Teatro Rápido.”

À falta de provas materiais a que pudesse agarrar a sua personagem, Eduardo Gaspar encontrou a mãe de Gisberta na cabeça. “Queria falar da dificuldade em nos aceitarmos e em aceitarmos os outros. E nesse sentido esta mãe tanto podia ser a mãe da Gisberta, que nunca conseguiu de lhe chamar ‘o meu menino’, como a minha própria mãe, que não queria que eu fosse actor”, explica. Disso, dessa história de negação que começa numa vida muito pobre em que “a comida não dava para engordar, dava só para não morrer” e acaba num filho “tão bonito que nem parecia ser de verdade”, é ela a verdadeira protagonista ; o resto do palco é todo para Gisberta e para o que, passados oito anos, ainda podemos fazer com ela e que ambos, actriz e encenador, acreditam ser muito. “Nunca senti tão intensamente como neste espectáculo como o teatro pode ser um veículo de esclarecimento. Passaram-se oito anos e parece que não chegámos a sair do país onde morreu a Gisberta; as notícias dos jornais são sobre praxes violentas e bullying homofóbico”, diz Rita Ribeiro. “Há assuntos que imaginávamos já resolvidos mas não estão – e as redes sociais são muito delatoras disso”, continua Eduardo Gaspar.

Tanto na versão curta escrita para o Teatro Rápido como na versão expandida que se estreou em Outubro no Funchal, Gisberta parece ter o mesmo efeito sobre os espectadores. “Tivemos manifestações do público que foram muito marcantes: há abraços que se dão no final de um espectáculo como este e que não se dariam noutro, há adultos a chorarem como crianças, há a cumplicidade dos olhares dos adolescentes que parecem dizer ‘obrigado por me compreenderem e por o meu pai ter visto isto. Acho que é um espectáculo que permite o reconhecimento, e o reconhecimento liberta”, argumenta a actriz. Gisberta tem sido, por isso, mais do que apenas mais um espectáculo na sua carreira de 40 anos no teatro; é também uma forma de “intervenção social” a partir de um texto de que começou por ter medo. “Foi paixão imediata e às vezes quando nos aproximamos daquilo com que sonhamos fugimos… Disse ao Eduardo que não fazia, mas o texto não saía de dentro de mim. Os deuses conspiraram a nosso favor e as coisas não resultaram com a actriz que ele encontrou para me substituir. Acabei por dizer que sim. Pus a mochila do meu irmão António Semedo às costas, voltei a andar de eléctrico e ensaiei, ensaiei, ensaiei numa salinha do Chiado onde tinha de me mudar atrás de um biombo – como se estivesse outra vez no princípio, a começar a ser actriz”, conta.

Parte da missão deste espectáculo – chegar à cidade onde Gisberta morreu, e onde uma comissão de toponímia recusou dar o seu nome a uma rua – cumpre-se até dia 16 (sextas e sábados às 21h30; domingos às 18h). Outra parte talvez se cumpra nas escolas, onde Rita Ribeiro acredita que Gisberta tem de chegar – porque aí sim, talvez seja realmente possível começar esta história do princípio e dar-lhe outro fim.

Notícia corrigida: alteração do nome do autor do texto, Eduardo Gaspar

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