A discussão sobre dívida pública que já devíamos ter feito

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Portugal terá muito provavelmente de rever os compromissos que tem decorrentes da dívida do Estado, o que é o mesmo que dizer “reestruturar” dívida, a não ser que haja uma mudança política de fundo na União Europeia, que tem estado afastada do horizonte. A questão em aberto é quando reestruturar: agora ou daqui a alguns anos?

As razões por que teremos de reestruturar a dívida – isto é, mudar as condições de reembolso dos credores, o que significa algum tipo de incumprimento das condições acordadas – começam a ser cada vez mais evidentes, com um crescente coro de responsáveis a admiti-lo e com a Grécia a assumir já uma solução desse tipo, em que a banca credora vai perder cerca de vinte por cento do valor a que tinha direito.

Aparentemente já ninguém acredita no modelo de resgate dos países europeus: nem os credores, nem as agências de rating dos EUA, nem os próprios parceiros europeus. A perspectiva da “reestruturação” da dívida aportuguesa tem já a chancela da agência Moody’s, que ao explicar a sua decisão de descer no início do mês a sua nota da dívida nacional para um nível considerado “lixo” refere justamente o risco de os investidores em títulos de dívida terem de participar num futuro novo financiamento de resgate do país. E ontem, quando desceu a nota da Grécia para próximo do nível de incumprimento, assinalou justamente que a reestruturação da sua dívida abre um precedente para outros países da zona euro.

Por uma vez, mesmo que por más razões, uma das entidades conhecidas por dar notas AAA a empresas na falência, arrisca-se a estar certa, mesmo que seja por más razões. Além dos conflitos de interesses e da falta de isenção que lhes são conhecidos, as agências dos Estados Unidos ajudaram a criar as condições para que as suas profecias se cumpram, o que pode ser interessante para ajudar a travar a depreciação da posição internacional do dólar e permitir aos seus accionistas ganhar mais dinheiro também com a dívida de países em dificuldades.

O facto de a probabilidade de reestruturação futura ser muito elevada radica, contas sobre taxas de juro à parte, no facto de que o que é impagável agora será ainda mais impagável depois de a economia dar o trambolhão que vai sofrer devido ao programa político imposto pela União Europeia (através da Comissão e do BCE) e pelo FMI como condição para o resgate financeiro de Portugal. O reequilíbrio das contas públicas e das contas externas nacionais teria inevitavelmente de acontecer, com um impacto inicial sempre negativo. Poderia era ser feito noutros moldes, com uma política que deixasse antever crescimento da economia a médio prazo.

Reestruturar dívida é sempre mau, mas quem chega a esse ponto normalmente fá-lo porque já não tem outra escolha. No caso de Portugal, em que o resgate externo nos comprou algum tempo, a opção que se coloca é entre tentar renegociar nos próximos meses as condições de reembolso aos credores ou ter de fazê-lo mais tarde, quando o país se verá confrontado com escolhas ainda mais negras do que as que hoje se perspectivam.

O grande argumento contra entrar já num processo de renegociação da dívida é que o país seria pioneiro numa solução que não convém já ao sector financeiro (sobretudo ao dos grandes países europeus) e que contaria quase certamente com forte oposição política na União Europeia, cujos responsáveis têm estado alinhados com os interesses do sector financeiro. Ficarmos afastados muitos anos dos mercados de crédito, a razão de fundo que o coro do arco do poder costuma invocar contra a reestruturação, é neste momento uma questão acessória, porque a essa pena estamos já nós condenados com o modelo adoptado.

A vantagem em aliviar já os encargos com os credores, mesmo que se tratasse apenas de uma dilatação de prazos de reembolso, seria a de permitir libertar recursos para evitar o afundamento da situação social e investir em actividades produtivas, para tentar reequilibrar contas e tornar a dívida pagável. De momento, afigura-se como a única opção que permitiria aliviar a situação que se perspectiva para Portugal, a não ser que ocorra uma mudança política de fundo na União Europeia, o que até há pouco não era verosímil, mas que poderá tornar-se obrigatório com a perspectiva de um agravamento da situação italiana, sob pena de desintegração do próprio euro.

Mas se isso não acontecer, a necessidade de termos de ir renegociar com os credores, ou assumir um incumprimento, daqui a algum tempo, quando a economia se tiver já se contraído brutalmente, só adiciona desastre ao desastre em que já estamos metidos. Aí, a reestruturação não poderá ser tão suave como agora, e em vez de adiar reembolsos poderemos ter de assumir que não pagamos parte substancial do valor a que os credores têm direito.

Este ponto de vista é razoável numa perspectiva nacional. Mas não na perspectiva do sector financeiro internacional, para quem é conveniente uma reestruturação mais tardia. Porquê? Porque quanto mais tarde a reestruturação acontecer menores serão os inconvenientes ou as perdas do sector privado, que à medida que as obrigações dos Estados forem vencendo podem ir diminuído a sua exposição a esse risco, que é assim transferido para os contribuintes, sobretudo europeus, através das posições assumidas pelo FEEF, o MEEF, o FMI e outros agentes dos resgates.

A insistência dos líderes europeus em programas como os que acompanham os resgates já em curso pode ser conveniente para a grande finança, mas não tanto para os seus contribuintes nem para as economias que a semântica vigente diz estarem a receber ajuda. Esta era uma discussão central que deveríamos ter tido na campanha eleitoral. Querem começar agora, ou esperar que meio país esteja a pão e água? Este é, claro está, apenas mais um dos prismas sob os quais se pode analisar a crise actual.

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