Os argumentos para uma desvalorização fiscal

O acordo entre Portugal e a troika inclui uma medida que atraiu muita atenção, a chamada "desvalorização fiscal". O objectivo desta medida é o de melhorar, no curto prazo, a competitividade internacional e o emprego através de uma transferência do peso da fiscalidade do trabalho para o consumo privado.

Há duas razões principais para Portugal adoptar esta política. Em primeiro lugar, a desvalorização fiscal é especialmente adequada para enfrentar os desequilíbrios actuais da economia portuguesa e para melhorar a balança comercial. Em segundo lugar, uma melhoria da balança comercial vai ajudar de forma significativa a garantir os ajustamentos orçamentais e estruturais que Portugal tem de executar.

Portugal entrou nesta crise fatigado por uma década de crescimento lento, perda de competitividade e desequilíbrios crescentes. Durante a última década, o consumo privado em percentagem do PIB aumentou de 63 para 68 por cento, o investimento privado diminuiu de 28 para 19 por cento e o consumo do Estado cresceu, principalmente durante a crise, de 19 para 22 por cento. Se se somar estas percentagens, compreende-se rapidamente que, durante este período, Portugal tem gasto mais do que o seu rendimento todos os anos. A dimensão do financiamento do resto do Mundo (principalmente Europa) é dada pela Balança de Transacções Correntes (BTC), que registou um valor médio negativo de 9,4 por cento ao ano durante o período de 2000 a 2010. Em resumo, Portugal recebeu emprestado de estrangeiros 9,4 por cento do seu rendimento todos os anos. Acumula-se este crédito e obtém-se uma posição externa líquida muito negativa, de cerca de 110 por cento do PIB.

Para reequilibrar a sua economia e pagar as suas dívidas, Portugal tem de reduzir o consumo e as importações e aumentar as exportações. O reequilíbrio externo é difícil, uma vez que o nível de liberdade das autoridades portuguesas é reduzido: não têm uma política monetária autónoma, não têm uma divisa para desvalorizar e têm pouco poder na política orçamental. Na era antes da união monetária, a política natural para ajudar ao ajustamento era desvalorizar a moeda. Hoje, Portugal tem de encontrar políticas que permitam a realização de uma desvalorização "sintética". No quadro actual de opções políticas limitadas, isto pode conseguir-se com uma descida dos salários e/ou com uma reforma fiscal que passe pela diminuição das contribuições para a Segurança Social dos empregadores e um aumento do imposto sobre o consumo, isto é, do IVA. Eu sou favorável à segunda opção.

Como é que funciona?

Pergunte a um empresário o que acha da desvalorização fiscal. A resposta vai depender do efeito directo da descida do imposto sobre o trabalho nos seus custos. Se o empresário tem uma empresa onde os custos laborais têm um peso relativo pequeno, ele pode considerar o efeito da medida como marginal. Mas, de facto, o pensamento do empresário estará errado.

Considere o exemplo de uma empresa - pode ser uma firma de limpezas, de advocacia ou um produtor eléctrico - que reduza os seus custos laborais devido à diminuição da tributação sobre o trabalho e transfira essa redução de custos para o preço a que vende os seus produtos. O preço do produto diminui. Agora considere outro produtor que paga serviços de limpeza, electricidade e contrata advogados. Este produtor beneficia directamente com a redução dos custos laborais devida à diminuição da tributação fiscal e beneficia indirectamente com a redução dos custos associados aos produtos e serviços que ele compra. O erro no pensamento do empresário é o erro clássico de alargar as conclusões de indivíduos, que são lógicas do ponto de vista individual, para o colectivo de todos os indivíduos.

Mas há mais, dado que a descida da tributação sobre o trabalho é apenas uma parte desta política. A segunda parte é aumentar o IVA. O leitor pode pensar que, ao aumentar o IVA sobre a electricidade ou sobre outros inputs, se está a perder as reduções de custos indirectas descritas antes. Isto não é verdade, uma vez que os produtores intermédios podem reembolsar o IVA, que é um imposto que se aplica apenas aos consumidores finais domésticos. E, mais importante que isso, os exportadores estão também isentos de pagar IVA e vão recuperá-lo. E, assim, a transferência fiscal da tributação laboral para o IVA favorece os exportadores e diminui as importações através de uma redução do consumo. O sucesso da sua implementação reside essencialmente em dois pilares: concorrência e concertação. A concorrência é a força que leva as empresas a transferir a redução dos custos para os preços. Em sectores onde a concorrência é diminuta, as autoridades vão precisar de implementar rapidamente políticas destinadas a fazer subir o nível de concorrência e a garantir que as empresas baixam os seus preços como resposta à diminuição dos seus custos. A concertação é o contrato social que garante que a redução dos custos de trabalho não será anulada por uma subida de salários. Recorde-se que a desvalorização fiscal é uma alternativa ao corte de salários. Obviamente, uma subida nos salários neutralizaria os efeitos desta política. Por fim, mas não menos importante, esta medida deverá, a prazo, criar empregos.

Podemos dispensá-la?

A correcção das finanças públicas quando não há crescimento, recursos para redistribuir e empregos são a melhor receita para uma acumulação das tensões sociais. Neste aspecto, o plano português é encorajador, uma vez que contém medidas ambiciosas para dinamizar o crescimento e a produtividade, dá importância à protecção aos segmentos mais frágeis da população e prevê uma correcção orçamental mais lenta do estava previsto no PEC IV para limitar os efeitos adversos no crescimento. No entanto, o ajustamento vai demorar tempo e exigir muitos sacrifícios. Actualmente, Portugal precisa de atingir uma desvalorização fiscal o mais elevada que for possível para maximizar as hipóteses de um ajustamento bem sucedido. Diminuir a contribuição paga pelo empregador para metade representaria uma redução dos custos laborais de aproximadamente 10 por cento do PIB. Para manter o orçamento equilibrado e não colocar em risco a sustentabilidade orçamental da Segurança Social, a questão prática fundamental consiste em saber quanta receita adicional pode ser gerada pela subida das taxas de IVA, especialmente as taxas reduzidas, ao mesmo tempo que se minimiza os impactos adversos nos cidadãos em situação económica e social mais frágil. A quantificação exacta desta política deverá ser apresentada pelo Governo até ao final de Julho. Comparada com uma desvalorização nominal, a desvalorização fiscal tem vantagens, desvantagens e outras implicações que não é possível discutir neste artigo por motivos de espaço. O aspecto essencial é que é uma política que melhora a balança comercial e é coerente com o necessário reequilíbrio da economia portuguesa.

Professor na Faculdade de Economia da Universidade Nova
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