Seguradoras acedem a dados clínicos, mesmo após a morte

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Dados dos doentes dos hospitais públicos e privados têm tratamento diferenciado Fernando Veludo / nFACTOS Enric Vives-Rubio

As seguradoras estão a conseguir aceder aos dados clínicos dos seus clientes, essencialmente os subscritores de seguros de vida, após a morte deles, com base em cláusulas de autorização colocadas no meio dos contratos de seguro.

Esta forma de consentimento tem bastado à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) que, em múltiplos casos, tem autorizado os hospitais públicos a disponibilizarem os dados de saúde dos seus pacientes. Contudo, a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) tem um entendimento diferente, não considerando válida esta forma de consentimento.

Para que o acesso seja autorizado exige que o cliente tenha assinado uma cláusula específica, separada do resto do contrato, que torne o cidadão plenamente consciente de que está a autorizar a consulta de dados sensíveis.

As diferenças de entendimento estão ainda a criar uma desigualdade de tratamento consoante o estabelecimento de saúde utilizado, já que a CADA só pode intervir em casos que envolvam instituições públicas. Os hospitais privados ficam fora da alçada desta comissão, estando, por isso, os cidadãos sujeitos a uma maior protecção dos seus dados clínicos, quando recorrem a este sector.

O presidente da CNPD, Luís Silveira, lamenta a confusão e apela ao Parlamento para resolver a questão que diz está a deixar os cidadãos "desnorteados e inseguros". Já o presidente da CADA, António José Pimpão, sustenta que a CNPD não é competente para analisar o acesso a dados de saúde no sector público, após a entrada em vigor da nova lei de acesso a documentos administrativos (LADA) em 2007. Isto, porque o diploma estipula que o acesso a documentos administrativos, "nomeadamente quando incluam dados de saúde", se rege por aquela lei.

Luís Silveira contesta a revogação tácita da competência da comissão a que preside, apesar de reconhecer que a LADA é posterior à Lei de Protecção de Dados Pessoais, de 1998. "Ambas são leis do Parlamento e o ideal é que a Assembleia da República legislasse de forma harmónica. Mas não podemos esquecer que a Lei de Protecção de Dados Pessoais é a transposição de uma directiva comunitária, onde se estabelece que os dados de saúde são sensíveis e como tal terá que ser uma entidade independente criada para o efeito, a CNPD, a regular o seu acesso", afirma Luís Silveira. E acrescenta: "Por outro lado, também a Constituição garante a protecção dos dados pessoais. Ora uma lei não se pode sobrepôr a uma directiva e à Constituição, ainda que seja posterior a estas."

Paula Lobato Faria, especialista em Direito da Saúde e professora na Escola Nacional de Saúde Pública, diz que há um conflito de leis, mas considera um "artifício jurídico" dizer que os processos clínicos são documentos administrativos. "Se assim fosse, para que temos duas leis, a de protecção de dados pessoais e uma específica para informações de saúde e genéticas, que se dedicam exclusivamente a esta questão?" Além disso, considera inconstitucional haver níveis de protecção diferentes nos processos clínicos apenas porque um está no sector público e outro no privado. Paula Lobato Faria defende que o consentimento tem que ser expresso e específico para o acesso aos dados de saúde. "Não basta uma cláusula metida num bolo, no meio de um contrato de seguros", sustenta.

Luísa Neto, constitucionalista e professora universitária, considera que as cláusulas de autorização metidas no meio do contrato de seguro "são nulas e não podem ser consideradas". Isto, porque a lei de protecção de dados exige que o consentimento seja livre, específico, informado e expresso. António José Pimpão discorda e diz que as cláusulas são válidas até eventualmente serem anulada pelos tribunais, adiantando que a CADA está a prepara um parecer sobre a questão do consentimento. Uma posição que nem a responsável pelos serviços jurídicos da principal seguradora portuguesa, a Fidelidade Mundial, subscreve. Isabel Lage considera que é necessário um consentimento expresso e específico para o acesso aos dados de saúde após a morte dos doentes.

Luís Silveira lembra que há uma desigualdade económica entre seguradora e o segurado e alerta: "Às vezes as pessoas que nos procuram pensam que ao não autorizarmos o acesso aos dados lhes estamos a dificultar a vida, mas não percebem que o que as seguradoras querem é eventualmente arranjar nos dados clínicos um motivo para não pagar."

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