43 mulheres foram mortas em Portugal em 2010, vítimas de violência doméstica
O ano passado foi o segundo pior desde que, em 2004, a União de Mulheres Alternativa e Resposta começou a recolher notícias. Os dados dos tribunais são igualmente preocupantes.
O namorado espetou-lhe uma faca de cozinha no peito. Tinham discutido por telefone e a rapariga de 23 anos precipitara-se para casa dele - um rés-do-chão de um prédio do Montijo. Ana Carvalho foi a primeira a morrer em 2010, o segundo pior ano desde 2004, aquele em que o Observatório de Mulheres Assassinadas iniciou a recolha destas notícias na imprensa.
A lista de nomes é longa. Constrói-se a partir de notícias publicadas nos diários nacionais, que vão sendo agrafadas em molhinhos de dois, três ou quatro e enfiadas numa capa de argolas. Depois das notícias sobre Ana, as notícias sobre Sofia, de 29 anos, morta a tiro pelo namorado, em Corroios, Seixal. Sofia já arrumara as suas coisas. Ia reiniciar a sua vida longe dele.
Maria José Magalhães, presidente da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), a organização não governamental que criou e gere o observatório, fala num ziguezague: 40 em 2004, 34 em 2005, 36 em 2006, 22 em 2007, 46 em 2008, 29 em 2009, 43 em 2010. Não lhe parece haver qualquer ligação directa entre estes números e as alterações que foram acontecendo no quadro legal ou nas respostas às vítimas de violência doméstica.
"Número preocupante"A secretária de Estado da Igualdade, Elza Pais, acha incorrecto comparar dados anuais tendo por base notícias de jornal. Parece-lhe que nada garante a uniformidade de critérios jornalísticos de uns anos para os outros. Por isso, prefere olhar para os dados dos tribunais, que o país começou a tratar há três anos: 42 homicídios transitados em julgado em 2007, 36 em 2008, 43 em 2009.
Os dados dos tribunais mostram o mesmo w - ou jogo de sombra e luz - das notícias de jornais. Mas tirar ilações de eventuais diferenças anuais também lhe parece desadequado. Certo, para Elza Pais, é analisar períodos: "Temos, em média, 40 mulheres mortas em contexto de conjugalidade. É um número preocupante, por isso temos vindo a desenvolver uma estratégia."
"As mulheres estão a mudar", arrisca Maria José Magalhães. "Elas dizem que não, que não querem uma relação violenta. E eles não aceitam essa decisão." E "as pessoas continuam convencidas de que a violência doméstica é um problema de escalada (ele diz uma coisa, ela diz outra, por aí fora), ainda não perceberam que é um crime muito grave".
Pelo menos nove das 43 mulheres assassinadas no ano passado num quadro de violência doméstica já tinham apresentado queixa. E 29 ainda mantinham uma relação amorosa com o agressor (namorado, companheiro, marido ou amante), a par de oito que já a tinham terminado. A activista, e investigadora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, diagnostica: "A mesma sociedade que lhes diz para virem cá para fora, não se organizou o suficiente para as proteger. Elas têm de vir cá para fora com muito cuidado."
Logo em Janeiro do ano passado, Luísa Travanca foi morta pelo ex-companheiro à frente dos filhos dela - dois rapazes de 13 anos e um de 16. Contou um familiar: "A Luísa terminou a relação há dois ou três meses e desde então ele não a largava. Bateu-lhe uma vez e ela fez queixa à polícia, mas de nada serviu. Tentou abalroar o carro dela e não houve consequências."
Maria Isabel Martins, da Póvoa de Varzim, nem chegou a realizar o intento. O marido dizia-lhe: "Quando pedires o divórcio, encomendo o teu caixão." E, em Setembro do ano passado, o filho mais novo encontrou a mãe morta no quarto e o pai morto na sala - com o revólver ainda na mão.
Fenómeno afecta jovensÀs vezes, quem está ao lado, sofre as consequências por tabela. Já em Abril, em Albergaria-a-Velha, Elisabete, de 40 anos, e o filho, de dois, foram mortos pelo homem de quem ela já se separara. Ele assinara o divórcio, mas nunca o aceitara de facto. Matou a família e matou-se.
"Isto é um fenómeno português, europeu, mundial", torna Elza Pais. "Somos herdeiros de uma cultura civilizacional de desrespeito de um género pelo outro, com mulheres educadas para a submissão e homens educados para o domínio. Toda esta cultura de domínio de uma pessoa sobre a outra começa a mudar, mas isso não acontece de um dia para o outro."
A visibilidade da violência doméstica tem crescido, de forma progressiva, ao longo da última década. Pouco a pouco, o país parece ultrapassar a concepção de que este é um problema da esfera da intimidade para ver nele aquilo que já está plasmado na lei desde 2000: um crime público. "Na fase de desenvolvimento em que estamos, as vítimas querem libertar-se e, se a protecção não for reforçada, o homicídio pode acontecer", advoga a secretária de Estado, apontando o reforço de respostas criadas para amparar as vítimas e conter os agressores (ver página ao lado).
Os estudos que têm sido feitos pela Universidade do Minho indicam que as novas gerações continuam a agredir-se. A taxa de vitimação no namoro é mesmo equivalente à da violência no casamento: 25 por cento. Prevalece a violência emocional (insultos, humilhações, ameaças, tentativas de controlo) sobre a pequena violência física (bofetadas, empurrões). Para sensibilizar os mais jovens, o país tem no ar uma campanha contra a violência no namoro e investiu em projectos de sensibilização nas escolas. Para já, o fenómeno mata: quatro mulheres mortas no ano passado tinham 23 anos ou menos.