Venda de fármacos para crianças hiperactivas continua a aumentar

Foto
Os especialistas alertam para o facto de nem sempre crianças agitadas serem hiperactivas Enric Vives Rubio

João, Maria, José, tanto faz. São só miúdos irrequietos ou serão hiperactivos? São só muito distraídos ou têm um défice de atenção? Resolve-se com paciência e tempo ou é preciso também a ajuda de um químico? Há cada vez mais crianças com o diagnóstico de Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção (PHDA) e, por isso, cada vez mais crianças são medicadas com psicoestimulantes, como a conhecida Ritalina.

Na história de Linda Serrão os nomes em causa são Bernardo, Rodrigo e Eduardo. Os três filhos com diagnóstico de PHDA levaram-na a criar a Associação Portuguesa da Criança Hiperactiva, que reúne mais de 100 associados. Tantas vezes foi contado nos jornais e revistas o caso dos três rapazes medicados que, no entretanto, eles cresceram. Hoje, Linda Serrão olha para a família e nota que os rapazes se fizeram quase homens e "são eles que decidem se precisam ou não da medicação". Para trás ficam muitos dias de desespero. "Foi um inferno", reforça Linda, notando que os pais também acabam por ficar dependentes da "preciosa medicação".

Desde a introdução no mercado, as vendas dos psicofármacos usados para tratar PHDA aumentam de ano para ano em Portugal. E, todos os anos, encontramos no gráfico de vendas do metilfenidato (princípio activo da Ritalina, Rubifen e Concerta) a mesma curva: uma quebra acentuada no Verão (quando muitos especialistas aconselham uma pausa na medicação) e um disparo significativo no início do ano lectivo. Em 2009, segundo dados da consultora IMS Health, foi assim: de 4491 unidades em Agosto, as vendas dispararam para 13.206 em Setembro. Apesar deste salto na ordem dos 200 por cento, os valores máximos desse ano surgem em Novembro, com mais de 17 mil embalagens vendidas.

No total, de Maio de 2009 a Abril de 2010, venderam-se nas farmácias portuguesas 157 mil embalagens de medicamentos com metilfenidato e a despesa com estes fármacos totalizou mais de 3,6 milhões de euros. Dois anos antes tinham sido 116 mil as embalagens vendidas, o que aponta para uma subida, desde essa altura, da ordem dos 35 por cento.

Nota-se que é na hora de regressar aos bancos da escola que o fármaco é mais reclamado. E é também aí que o problema costuma ser detectado. A criança, que era apenas muito distraída e irrequieta, passa a ser motivo de preocupação quando esses traços têm consequências nos resultados escolares. E, geralmente, entra-se no consultório do pediatra.

100 mil crianças afectadas

"Dizem-se muitas asneiras sobre isto tudo", avisa o neuropediatra Nuno Lobo Antunes. O especialista, que dirige o Cadin (Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil, em Cascais), considera que ainda estamos perante um subdiagnóstico do problema. Sem que exista um estudo nacional, as estimativas apontam para uma percentagem de crianças afectadas, entre os seis e os 12 anos, situada entre um e sete por cento. Ou seja, podem chegar aos 100 mil casos. Mas, mais importante ainda, o médico explica que o diagnóstico de uma PHDA é comportamental - não existe um marcador biológico. Ou seja, não é nada que possa ser detectado numa análise ao sangue ou, por exemplo, numa TAC (Tomografia Axial Computadorizada). É, resume, um "defeito invisível".

O diagnóstico é conseguido após análises e testes feitos por especialistas de várias áreas e, como sempre na medicina, a avaliação acontece caso a caso. Nuno Lobo Antunes nota que é preciso perceber, por exemplo, se a criança tem dificuldade de concentração em matérias que exigem esforço mental (não se deve ter em conta um programa de televisão preferido ou um jogo de consola) e se não existem outros factores que possam justificar este resultado. Por outro lado, o neuropediatra explica que, apesar de a hiperactividade e a impulsividade associada ser o factor mais incomodativo, há muitas crianças medicadas com metilfenidato para o défice de atenção que nem sequer revelam sinais de hiperactividade. Pensa-se mesmo que o quadro sem a perturbante impulsividade afecta mais as raparigas, que são diagnosticadas quatro anos mais tarde do que eles. Até lá passam por meninas sonhadoras, com a cabeça na lua.

Depois do diagnóstico, vem o tratamento. Normalmente, apoiado no metilfenidato, um químico que actua num receptor cerebral aumentando a capacidade de concentração e que só deve ser prescrito quando necessário, sublinha o especialista. A verdade é que o comportamento destas crianças irrequietas leva a que possam ser rotulados de miúdos mal-educados e até burros, culpando-se os pais pelas falhas. Muitas vezes, notam os especialistas, encurralados nestes mitos e na vergonha, os pais correm o risco de hipotecar o futuro dos filhos que não conseguem ter sucesso na escola.

Não à hipermedicação

Mas há também quem veja aqui o perigo do facilitismo. "A hipermedicação é um facto, condenável, com base muitas vezes em diagnósticos apressados e não em verdadeiros exames neuropsicológicos, que muitos pais e profissionais incentivam para dizer que fizeram alguma coisa. Como se fosse o comprimidinho mágico que cura tudo", reage o pediatra Mário Cordeiro. E deixa o alerta: "Se o uso é correcto, o abuso é condenável. O diagnóstico não pode ser feito "em vãos de escada" nem com base num "parece-me que"."

E não é, assegura Miguel Palha, especialista do Diferenças - Centro de Desenvolvimento Infantil, que considera que as vendas deste fármaco "deviam aumentar muito mais". "A desatenção é a causa isolada mais frequente do insucesso escolar", sublinha, defendendo o recurso ao tal "comprimido" sempre que há um perturbação do desenvolvimento e aprendizagem associado a um insucesso escolar ou perturbações significativas nas dinâmicas da sala de aula ou na dinâmica familiar (ou seja, traduz, "pais à beira de um ataque de nervos").

Sabe-se que existe uma contribuição genética para este problema. Os pais hiperactivos têm 50 por cento de probabilidade de terem um filho hiperactivo, nota Nuno Lobo Antunes, que aproveita ainda para, apoiado em estudos internacionais, apontar: a probabilidade de os hiperactivos terem um acidente de bicicleta aumenta 50 por cento; de irem parar às urgências aumenta 33 por cento; de os pais com filhos hiperactivos se divorciarem aumenta três a cinco vezes; de se tornarem consumidores de drogas aumenta duas vezes.

Sugerir correcção
Comentar