Natália de Andrade, a cantora iludida que pensava ser diva

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Natália de Andrade Espólio Natália de Andrade

Uma crítica musical descreveu-a na juventude como "uma autêntica vocação lírica, a quem podem estar reservados grandes triunfos", mas só conseguiu gravar na meia-idade. Dedicou a vida a tentar ser uma musa do bel-canto, mas não passou de uma diva iludida. Acabou por alcançar uma espécie de êxito póstumo: tem uma legião de "fãs" e os seus vinis são peças de coleccionador.

O que resta da vida de Natália Barbosa de Andrade está embalado em oito pacotes de papel dispostos ao lado de um piano num enorme salão de festas que mal é usado. A janela do casarão dá para uma paisagem envolta em árvores a perder de vista.

Retirando-se a fita-cola amarelecida de um dos pacotes, descobrem-se nove fotografias autografadas. Parecem desacompanhadas, porque adivinhamos terem sido as que ficaram por distribuir. Rigorosamente iguais e em tons sépia, os retratos são de um rosto muito jovem (na casa dos 20 anos) e têm colados ao canto uma tira branca com o seu nome e a palavra "soprano". Nas costas do retrato, a ordem é inversa, primeiro manuscreveu "cantora lírica", para que não haja dúvidas, e depois assinou o seu nome: Natália de Andrade. Sem data.

Num segundo pacote estão guardados dois discos de vinil de 33 rotações, com interpretações suas de obras de compositores como Verdi e Puccini. Na capa aparece sorridente e idosa (parece andar pelos 70 anos). Nenhum dos álbuns está datado.

Num terceiro pacote há um diário escrito à mão em papel almaço envelhecido que termina na página 1050, mas que só tem 549 porque Natália continuou naturalmente o seu relato mas saltou da 394 para a 895 sem disso se dar conta. No que intitulou A Minha Biografia, escreveu em epígrafe: "A música será sempre, através dos tempos, o expoente máximo da compreensão e beleza: um mundo eterno repleto de realidade... num sonho maravilhoso."

Natália pop
Enganava-se Natália quando escrevia: "Só através dos meus discos, é que Portugal me poderá ouvir." Auto-intitulada cantora lírica, mas acabando por ser celebrizada em programas televisivos, como O Passeio dos Alegres, de Júlio Isidro, ou em imitações de Herman José na Roda da Sorte, como uma figura caricatural, o seu canto pode hoje ser descarregado na Internet como toque de telemóvel, há cópias dos seus vinis em CD que passaram de mão em mão, tem um website de um admirador (http:nataliadeandrade.com.sapo.pt) que lhe tenta reconstituir o percurso e lhe admira "a luta e empenho que dedicou ao seu sonho de vida", está no YouTube com vídeos que ultrapassam as 40 mil visualizações. De quando em quando, esses poucos soundbytes chegam-nos num daqueles emails que divertem passageiramente e logo se esquecem e são apagados.

Encontra-se o seu rasto em várias referências humorísticas na Internet, uma delas falando da existência de "uma "Natália de Andrade-experience"" - leia-se sinónimo de mal cantar - e mesmo a reivindicação, irónica, da possibilidade de ser criado um clube de "fãs".

Para os que a conhecem por esta via, Natália de Andrade não representa mais do que a lembrança de uma pretensa cantora lírica tornada anedota e que, para muitos, apenas é sinónimo de um tema, A canção verde, celebrizado por Herman José na década de 1990. Com a voz esganiçada e estridente, o efeito cómico quase parece fácil de obter porque quando se passa da imitação para o tema cantado pela própria parece-nos que a distância entre caricatura e caricaturada não será afinal assim tanta.

Natália de Andrade, passados onze anos da sua morte, mantém assim um nicho de "admiradores" da sua figura quase burlesca e um lugar reservado numa espécie de cantinho da cultura pop que a Internet eternizou. Ela que o que queria era ter o seu nome imortalizado no mundo da música erudita, o seu nome gravado no firmamento do bel-canto ao lado de Montserrat Caballé e Maria Callas... "Tenho a certeza que ficarei na História da música erudita", escreve no seu diário.

Jovem promessa?
Além dos dois vinis que mantinha em sua posse no final da vida, Natália de Andrade conseguiu gravar mais quatro discos, os dois primeiros na Columbia de Madrid e os restantes na Valentim de Carvalho, em Lisboa. Na capa do primeiro lê-se uma elogiosa crítica publicada no Diário de Lisboa que lhe foi feita por uma prestigiada e exigente crítica de música erudita da altura. Francine Benoit anuncia-lhe um futuro promissor: "De facto, trata-se de uma autêntica vocação lírica, a quem podem estar reservados grandes triunfos." E continua referindo-se às suas "qualidades vocais de ampla e boa sonoridade, apesar da sua extrema mocidade".

A crítica inicial foi de tal forma marcante que a reproduz na parte de trás de três dos seus seis discos. Não se sabe que idade teria Natália à data da promissora crítica mas os pais parecem ter-lhe acalentado o talento. A mãe, Maria de Andrade, dava aulas de piano em casa e intitulava-se cantora lírica, fazendo-se em alguns concertos acompanhar pela filha. A sua estreia foi no Conservatório de Lisboa e pouco depois surge ao lado da mãe num recital no Casino de Espinho.

Enquanto o casal esteve junto - separaram-se já a filha era adulta -, Maria cultivou o talento da pequena, que conta a sua estreia, no diário enquanto criança de dez anos, no colégio Calipolense, em Lisboa. Aqui, um pai sentado na plateia e demasiado empenhado em dar-lhe instruções de interpretação tanto gesticula, que faz da primeira oportunidade artística da pequena Natália um fracasso. Não conseguirá cantar, em vez disso gargalha. "Deu-me uma vontade de rir tão grande, que ri tanto, tanto, com as mãos a tapar a cara, cheguei às gargalhadas sem nada que me pudesse fazer calar!!!"

Mais tarde, os pais inscreveram-na como aluna externa do Conservatório Nacional de Lisboa, de canto e piano, algo que na altura era reservado a poucos. Apenas "famílias com posses ou meninas bem com ligações familiares punham as filhas no Conservatório. Só nos últimos cerca de 30 anos o ensino da música se vem democratizando", lembra Elsa Cortez, professora de Educação Vocal no Instituto Gregoriano de Lisboa. O pai era inspector no jornal O Século e movia-se bem no meio musical, tanto que em 1940 Natália surge no elenco de uma ópera do compositor Ruy Coelho, amigo da família, no Coliseu dos Recreios.

No seu diário fala de ter tido "alta classificação" a canto no Conservatório de Lisboa. Os registos comprovam que Natália andou erraticamente na instituição como aluna externa, entre os 18 e 21 anos, e as suas notas falam de média de Bom a Piano e a Ciências Musicais.

Apesar de a crítica à actuação que escolheu colocar nos seus discos fazer referência a uma jovem de tenra idade, não há registos vocais desse tempo. Os elogios foram estampados na primeira gravação que conseguiu fazer, quando tinha já 54 anos - uma crítica dedicada a uma jovem promessa impressa em discos cantados por uma mulher de meia-idade.

Não se sabendo então como cantaria a jovem Natália, resta-nos comparar a Natália de 54 anos com a que passou dos 70 anos, faixa etária em que gravou três dos seus álbuns. No último, em 1986, já tinha 76 anos.

Elsa Cortez ouve as duas Natálias e comenta acerca do primeiro disco, na meia-idade: "Aqui percebem-se as notas, a voz é mais limpa, o vibrato tem menos distorção, o que permite maior definição das notas. É bastante melhor do que mais à frente." Natália septuagenária: "As notas não estão definidas, há desigualdade do timbre e descontrolo do vibrato."

Há então uma diferença de qualidade de voz nos cerca de 20 anos que passaram entre um disco e outro mas ficará para sempre a interrogação: terá a jovem Natália tido boa voz? "Pode ter tido bom potencial vocal, não vou dizer que não poderia ter tido boa voz aos 20 anos. A voz tem muitas surpresas."

Mas para o potencial de uma voz ser aproveitado teria sido preciso "acompanhamento e desenvolvimento de um espírito crítico próprio e dos que a rodeavam para se poder aperfeiçoar". Se tal tivesse acontecido, diz Elsa Cortez, talvez tivesse chegado à maturidade com a voz disciplinada e treinada. Não foi o caso.

As últimas gravações que ficaram e pelas quais ficou conhecida são já no mesmo registo de A Canção Verde... São estas que a catapultam como um boneco de humor. São já de uma Natália de Andrade na terceira idade, quando toda a parte muscular envolvida no canto já está deteriorada e quase já não há cantores líricos na vida artística activa. "O drama dos grandes artistas é retirarem-se antes de perderem as suas capacidades", acrescenta Elsa Cortez.

O musicólogo Rui Vieira Nery é mais céptico e diz que pensar que Natália de Andrade tinha talento quando era jovem seria talvez o mais agradável de ouvir, quase como uma redenção póstuma para "uma história triste e injusta" de que ela foi alvo em vida, mais, "a utilização vergonhosa de um caso clínico". Apesar de a crítica Francine Benoit ver nela "algum talento", o especialista não acredita que tivesse grande potencial na juventude. Seria quando muito "medianamente competente", refere, mais uma das muitas jovens que passaram por um Conservatório, na altura, sem grandes exigências de entrada, nota.

Eternamente jovem
Talentosa ou não enquanto jovem, Natália de Andrade verá na juventude uma espécie de passado dourado onde pairará, em contraste com uma figura que ia envelhecendo. Uma vizinha no prédio onde sempre viveu, em Lisboa, Ana Paula Sousa, lembra que "com 60 anos dizia que tinha 20 e 25 anos".

Maria Emília Ramalho, chefe do departamento dos arquivos musicais da Antena 2 no tempo em que Natália lá foi colaboradora, recorda que "tirava 20 anos à idade" e lembra-se até de esta lhe ter contado "uma história de pura fantasia, quase de crianças": de como tinha uma irmã mais velha com o mesmo nome que tinha morrido e era dela o bilhete de identidade que usava, por isso tinha mais anos de idade no registo oficial do que na realidade. "Refugiava-se no sonho para fugir a uma realidade que era má. Vivia da imaginação."

Armando Carvalhêda, realizador e apresentador de programas da Antena 1, que também a conheceu quando era lá colaboradora, lembra-se de que esse esforço de se manter jovem resultava em vestes ridículas para a sua idade, como "um lenço-bandolete amarelo a prender cabelos louros que se entornavam pelas costas. Sempre cheia de colares, pulseiras e brincos. Vestia-se como uma adolescente, sempre de mini-saia, de cor garrida, desadequada à idade. Parecia que tinha saído de uma revista dos anos 1960".

Teria consciência dessa desadequação? No seu diário há alturas pontuais em que vai dando alguma nota do passar do tempo: "Diz-se que à medida que se vai tendo mais idade a voz vai descendo na tessitura [extensão de notas que consegue executar]", mas logo de seguida ressalva: "Pode ser que assim seja mas pode-se muito bem mantê-la o maior número de anos possíveis na melhor forma." De vez em quando repete, autoconvencendo-se: "Tenho todas as minhas faculdades vocais em plena forma, mais ainda do que antigamente."

Em momentos de maior angústia também a vemos a comentar o seu estado mental. Fala de "um esgotamento nervoso" que teve em Madrid quando lá foi gravar, "uma depressão" noutra altura. Por várias vezes se declara à beira da loucura. "A inquietação em que ando e o desespero horrível que se apossa de mim, às vezes, até me pode endoidecer."

O sonho de uma carreira artística tardou e é como se reduzisse o seu tempo de vida aos anos em que realizou as suas conquistas musicais. No extenso diário que manteve com a secreta esperança de que um dia se tornasse a biografia da sua carreira, não regista mais do que cerca de 20 anos - entre as décadas de 1960 e 1980 -, mas viveu até 1999, com 89 anos.

Arruma os seus 50 anos anteriores, antes de conseguir gravar o seu primeiro disco, em meras 22 páginas, com escassas referências temporais. Fala de passagem numa infância infeliz, porque os pais se davam mal e discutiam muito. "Fechava-me em mim própria e esperava sempre qualquer coisa que me elevasse a um mundo interior diferente." A música acabou por ser a sua forma de alheamento.

Começa a escrita do diário em 1961, dois anos antes de conseguir viajar sozinha para gravar na Columbia de Madrid o seu primeiro disco, com canções populares portuguesas, gastando com esse projecto todas as suas economias. Muitos dos seus discos foram-se gravando com o esvaziar de uma casa já humilde onde tudo foi sendo penhorado - cofre, livros, móveis, "garrafas de espumante" -, menos o decrépito piano, "que baixa meio-tom quando vêm os primeiros dias de verdadeiro calor" e do qual nunca se desfez, mesmo quando se encontrava na mais profunda penúria. Falando de si e da mãe, com quem viveu toda a vida, até esta morrer, escreve: "Nada temos para comer... como uma carcaça pequena ao pequeno-almoço e ao lanche, completamente seca, sem mais nada." Maria Emília Ramalho confessa "admiração" pela personagem: "Chegou a tirar comida da boca para gravar discos. Passou fome mas lutou por aquilo que queria."

A persistência
Além de se endividar, Natália tentou a todo o custo fazer-se conhecer por outras vias, escrevendo cartas, de Marcelo Caetano a Oliveira Salazar, reclamando o seu lugar no mundo português do canto lírico. Dedicou a essa missão - a de ser uma diva da ópera - toda a sua existência desde jovem, como se nada mais tivesse existido para além disso. "Até ao último sopro de vida hei-de marcar sempre a minha presença de qualquer maneira. Trabalharei incansavelmente até onde puder!... Será o meu nome de cantora lírica que permanecerá além da minha vida", escreve.

A sua persistência levou-a a lugares mais modestos e acabou por ganhar um meio de subsistência na rádio por onde passavam os seus ídolos musicais, a Antena 2, mas não como desejaria, como cantora. Por compaixão acabou por lhe ser atribuído um lugar como colaboradora do arquivo, onde tinha como tarefa ouvir discos e dizer se estavam em bom estado para serem ouvidos e pôr de lado os riscados, lembra Maria Emília Ramalho, então chefe dos arquivos musicais da RDP.

A última entrada do seu diário, já no início da década de 1980, acaba em tom de final feliz: conta como é reconhecida por "admiradores" nas ruas de Lisboa desde a sua aparição no programa Passeio dos Alegres, de Júlio Isidro, no que lê como mostras de apreço pelo seu valor como artista e não como aquilo que de facto seriam, troça pela figura de uma mulher debilitada e envelhecida que insistia saber cantar. "Não se pode imaginar a popularidade que actualmente tenho."

No mundo encantado
Natália criou vários refúgios onde cultivava o seu universo. É no que chama "mundo encantado", o Jardim Botânico, em Lisboa, a poucos minutos da casa onde viveu quase toda a vida, que se deslocava de propósito para se alhear da sua realidade e registar alguns destes sucessos e infortúnios, com a secreta esperança de que as páginas da sua história, cosidas a linha branca, ficassem para além de si.

No lugar onde ia passar férias com a mãe, nos arredores de Viseu, em Santo Estêvão, encontrou lugar com função semelhante, um bosque a que chama "mirante encantado". Aqui, ainda há hoje quem se lembre de Natália, juntamente com a mãe, irem tardes inteiras para os bosques treinar as vozes. Saíam depois do almoço e ficavam no meio da vegetação "horas esquecidas", lembra Maria da Ascensão Lemos, que hoje tem 72 anos, mas na altura era criança. "Era onde procuravam o silêncio para ensaiar."

Na aldeia ninguém lhes contestava o título de "cantoras de ópera de Lisboa" e o Jornal da Beira chega a anunciar um recital privado e pago protagonizado pelas duas, no Clube de Viseu, tinha Natália 30 anos. Natália viveu grande parte da sua vida sozinha com a mãe, numa dinâmica em que uma alimentava o ego artístico da outra. Lembra-se Hugo Ribeiro, operador de som da Valentim de Carvalho, que gravou alguns dos seus álbuns, de a mãe anunciar a filha como a maior cantora de ópera de Portugal, ordenando, na chegada ao café lisboeta a Brasileira: "Levante-se que acaba de chegar a maior cantora lírica de Portugal"; no seu diário, Natália de Andrade presta-lhe iguais honras e elogia "a voz de meio-soprano contralto verdadeiramente extraordinária" da mãe, Maria de Andrade, que a certa altura a acompanhava ao piano, lembra Maria Emília Ramalho.

Natália morreu sozinha, a 19 de Outubro de 1999, num lar para idosos onde estão guardados os oito pacotes de papel com os seus últimos pertences, como acontece com os bens dos utentes sempre que não há família ou amigos que os venham reclamar. A Fundação Sarah Beirão e António Costa Carvalho, em Tábua (região de Coimbra), é um lar que, na sua origem foi criado para albergar pessoas especiais: artistas. Como ela?

A sua entrada fez-se em Novembro de 1991 pelas mãos de responsáveis que apresentaram a nova utente ao pessoal como Natália de Andrade gostaria de ser apresentada, respeitando-lhe a ilusão, "que era conhecida internacionalmente e cá", lembra a auxiliar Graça Veiga Pereira. Já diminuída física e intelectualmente, foi anunciada como alguém que tinha tido uma bem-sucedida carreira e as cuidadoras semiacreditaram.

Jóias de fantasia
Não era como no bairro que deixava para trás, em Lisboa, onde era conhecida a sua fama de começar cedo, demasiado cedo os seus ensaios vocais. "De manhã, à tarde, à noite. Era a ópera, a gente não percebia. Aquilo entranhava-se no ouvido, eram uivos", queixa-se Ana Paula Sousa. Todos os dias Natália saía de casa dizendo que era famosa e que "ia ensaiar para o São Carlos" mas nem ela nem outros vizinhos alguma vez acreditaram nisso.

No lar era diferente. Ali, quase sem visitas, falava às funcionárias do lar da sua carreira gloriosa em Espanha, e havia quem acreditasse numa história de vida que ia contando. "Ela na Espanha era uma diva", referem relatos crédulos de Graça Veiga Pereira, que reproduzem o que ela lhes dizia, "tinha disco de platina ou de prata", hesita. Há nessas lembranças um misto de dúvidas, atribuídas mais à senilidade do que à imaginação. "Trazia jóias de fantasia e estimava-as como se fossem jóias a sério", reparava Graça Veiga Pereira.

Mesmo nos seus últimos tempos de vida, a música continuou a ser o centro da sua vida. Ao salão que tem junto à janela um piano de cauda era onde a traziam, já trôpega, uma a duas vezes por mês, lembra a auxiliar Otília Alves. "Gostava que lhe batessem palmas. Ria-se. Ficava na sala do piano 15 a 20 minutos, sozinha, ficava feliz", conta uma das funcionárias. "As pessoas ficavam admiradas de como tinha aquela voz naquela idade, imagine como era a voz dela quando era jovem", diz Rosa Gameiro. Ela bem dizia, "olha como eu era, filha", apontando para uma das suas fotografias autografadas de jovem que ficaram por distribuir.

Quando as suas capacidades se perderam e nem o percurso até ao salão do piano conseguia fazer, Natália continuou a querer ter música na vida. Já não cantava, mas para aceitar comer pedia que lhe cantassem. Rosa Gameiro rememora palavras italianas que nunca percebeu, eram de uma ópera, e imita de forma confusa uma palavra, algo como "viveremo", que ela lhe ensinou. "Meu amor, canta comigo", pedia. "Como era o sonho dela, eu cantava." É um excerto do verso inicial de Madame Butterfly, de Puccini: un bel dì vedremo (um belo dia veremos levantar-se um fio de fumo nos confins extremos do mar).

"No fim já não sabia quem era, a gente cantava e ela reconhecia algo que lhe pertencia, onde se reconhecia a ela própria", diz Graça Veiga Pereira. Para uma senhora "que era uma cantora internacional", lamenta que tenha vivido aqueles anos sozinha, quase sem visitas, e que ao funeral só tenham ido funcionárias e utentes do lar. "Foi muito triste o fim dela, um fim como uma pessoa qualquer. Tive pena, porque sabia que era uma pessoa notável."

No dia seguinte à sua morte, lia-se, em título, no Diário de Notícias: "Morreu a cantora lírica Natália de Andrade", como que oficializando o seu estatuto. No texto escreve-se que, "longe de representar um valor maior do canto, foi, todavia, uma mulher forte na sua convicção e paixão pelo canto lírico". Dela se recuperava, incontestadas, as notas que deixou da biografia, de que tinha sido "uma aluna brilhante do Conservatório" e tinha cantado ópera no Coliseu dos Recreios. A Antena 2 fez em 2005 um documentário que, apesar de explorar a controvérsia da figura, funcionava como uma homenagem.

Género: divas iludidas
É irónico que cinco anos após a sua morte, em 2004, a sua aproximação a uma espécie de glória mundial tenha acontecido pelas mãos de uma editora norte-americana alternativa dirigida a um nicho de apreciadores de música com sentido de humor, a Homophone.

Natália de Andrade é um de 12 nomes de uma colectânea internacional em CD onde surge ao lado de outras "musas" como ela, caso da inglesa Olive Middleton a cantar Verdi, Mari Lyn a cantar Rossini. O CD The Muse Surmounted, subintitulado "uma celebração da sinceridade do coração e dedicação transfigurada no canto que de outra forma ficaria desconhecido" vende-se na Internet (também na Amazon) e responde a um nicho de admiradores que ouvem Natália e outras como ela, não pela razão porque gostaria de ser ouvida - pelo virtuosismo -, mas por não o ter.

Curioso é que o norte-americano Gregor Benko, o produtor, diga que há mercado para estes desvios, já que este foi um dos seus projectos de música clássica "com mais sucesso comercial, vendendo bastante mais do que gravações de grandes artistas que tenho produzido". E constata que muitos dos "apreciadores" são, não por acaso, músicos profissionais.

Natália chegou a ter no seu tempo uma espécie "de palco privado" entre músicos profissionais, em Lisboa, lembra João Pedro Mendes dos Santos, professor de Formação Musical no Conservatório de Lisboa, que assistiu a algumas das suas sessões. Uma gravação vídeo feita na altura mostra-a com a mesma pele branca sobre os ombros com que aparece na capa de um dos seus discos, acompanhada por uma mini-orquestra de músicos profissionais, de instituições como a Gulbenkian, a abafar gargalhadas atrás de uma Natália demasiado compenetrada no seu canto para reparar.

Na altura, as suas edições de autor de cerca de 200 discos "esgotavam em um dia nas lojas Valentim de Carvalho, em Lisboa. Houve mesmo discos patrocinados por músicos para gozo pessoal, recorda Hugo Ribeiro.

O musicólogo Rui Vieira Nery não se orgulha de, a certa altura, enquanto jovem, ter feito parte desse circuito do qual depois se afastou. O que atraía os músicos para a figura de Natália? "Dentro do lado trágico, havia o lado cómico. Era uma caricatura do canto de ópera. Percebia-se que era alguém que tinha estudado canto, há ali um resto de técnica. É uma caricatura da técnica de canto."

O produtor Gregor Benko chamou-lhes ironicamente The muse surmounted, ou seja, as musas que conseguiram superar-se. Mas, contrariamente a Natália, muitas destas "divas" tinham dinheiro e patrocinaram a suas expensas as suas pretensas carreiras artísticas. A abastada americana Florence Foster Jenkins encheu o Carnegie Hall com três mil pessoas em 1944 e a sua conterrânea Mary Lyn pagou por uma série de programas num canal público de televisão de Nova Iorque na década de 1980.

Um mundo à parte
Há assim mais como Natália, têm em comum serem idosas e convencidas do seu talento, tendo conseguido ao longo das vidas abafar os risos à sua volta. "São pessoas iludidas, cantoras de 60 a 70 anos, cantaram todas as suas vidas e não se apercebem quando as suas vozes começam a soar mal. Não ouvem realisticamente as suas vozes." Vivem "num mundo delas". Foi este o título, "um mundo seu", escolhido por Daniel Collup para o documentário que fez sobre Jenkins. "Ela não ouvia o que nós ouvíamos. Estava convencida do seu talento. Iludida é a melhor palavra, não é maluca."

A admiração de Collup por este género vem também do facto de "os [verdadeiros] cantores de ópera não correrem riscos", diz Collup. E é José Pedro dos Santos, professor no Conservatório, quem diz que no CD "cantam todas mal, cada uma à sua maneira, mas a Natália é a mais empolgante". O professor tem toda a sua discografia e explica que os seus vinis se tornaram peças de coleccionador entre músicos.

Collup explica o fascínio pelas divas iludidas como algo de humano e, para que se perceba, traz o exemplo do programa televisivo American Idol (Ídolos). "As maiores audiências são nas audiências preliminares, onde aparecem personagens ridículas convencidas de que têm talento, são estas que as pessoas mais gostam de assistir." São arrasadas por um júri, mas se calhar continuarão a acreditar em si de forma cega. Nos programas onde se juntam os melhores, as audições são menos vistas.

"É difícil de definir. Fazem as pessoas sentir-se desconfortáveis: sabem que aquela pessoa está a cantar mal e agradecem não serem elas ali no palco", comenta Collup, que foi cantor lírico na juventude. Existe uma palavra em alemão para esta forma de prazer, é a Schadenfreude, "o sentimento de alegria e pena de alguém, é esse o sentimento que está associado ao prazer de ouvir as musas". É isso que atrai as pessoas pelas Natálias de Andrade do mundo.

Natália deixou, em oito pacotes, fotografias suas tiradas no tempo em que escolheu viver, a juventude, e dois álbuns, que tratava como tesouros: "Meus queridos discos!! Quero-lhes tanto, como se fossem entes queridos." No errático diário há uma frase que quase podia ser o resumo da sua vida: habitou "um mundo eterno repleto de realidade... num sonho maravilhoso".

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