Joshua Sofaer: "Apesar dos problemas, o Porto "tem uma vida cultural vibrante"

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"As pessoas adoram o Porto apesar de passarem a vida a resmungar", diz Sofaer Paulo Ricca/PÚBLICO

Daqui a um ano, no máximo, o Porto vai ter uma rua nova, e este é o homem que vai fazer disso (aliás já fez) uma festa. As práticas artísticas, acredita Joshua Sofaer, são a melhor maneira de fazer com que o poder pertença, efectivamente, ao homem da rua.

Joshua Sofaer, o britânico que o FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica convidou para vir ao Porto convencer cidadãos anónimos a darem o nome a uma rua, já pôs os japoneses de Moriya a contemplar numa galeria as toneladas de livros e revistas que deitaram ao lixo em apenas 24 horas, os noruegueses das Lofoten a folhear o catálogo das colecções (de selos, de chávenas de café, de bonecas, de fl ores) de todos os habitantes do arquipélago e os ingleses de Londres a revirar a cidade em busca de animais esculpidos em cenouras. Parece uma brincadeira, mas não é: a arte, diz ele, é o único lugar onde cidadãos anónimos se permitem fazer coisas que nunca lhes passariam pela cabeça. Incluindo governar (das grandes às pequenas decisões, como a de escolher o nome de uma rua) a cidade onde vivem.

PÚBLICO – Quando é que vão inaugurar a rua do Viver a Rua?

JOSHUA SOFAER – Gostávamos de concluir o processo até daqui a um ano. Nesta fase, o nosso painel de juízes está a escolher o seu top pessoal de cinco nomes, por ordem de preferência. A seguir iremos verifi car o rigor das histórias por trás destes nomes e confirmar que os proponentes querem mesmo avançar com a proposta. No fim, levaremos uma lista definitiva à Comissão de Toponímia da cidade, e depois depende. Quando houver decisão queremos inaugurar a rua a sério, com uma festa.

Como é que se lembrou de convidar a cidade a discutir que nome dar a uma rua?

Antes de vir ao Porto, já tinha lançado dois projectos semelhantes no Reino Unido, Name in Lights e Rooted in the Earth. Em Birmingham, propus que se escrevesse o nome de uma pessoa num néon gigante em pleno centro da cidade; em Londres, propus que se fizesse mais ou menos a mesma coisa, mas desta vez escrevendo o nome de uma pessoa com flores, em canteiros públicos de praças e parques da cidade. Em Novembro, o Núcleo de Experimentação Coreográfica (NEC) convidou-me para vir ao Porto fazer um workshop sobre como promover a inclusão social e activar uma cidade através das práticas artísticas, e nessa altura ficou decidido que eu voltaria com um projecto para o FITEI. O NEC queria que fosse uma coisa muito visível, mas que custasse muito pouco dinheiro, e então resolvi que seria isto: envolver os cidadãos do Porto na discussão acerca do nome a dar a uma nova rua.

O que é que tinha na cabeça no início do Viver a Rua?

Participar na escolha do nome de uma rua da cidade onde vivemos é mais do que mandar palpites e sugerir que as pessoas de quem gostamos fiquem imortalizadas no espaço público. É uma discussão que nos obriga a pensar sobre que tipo de pessoas queremos como modelo e o que realmente significa ser cidadão. É sobretudo nisso que estou interessado. Se no fim do dia as pessoas concluírem que não há ninguém que mereça ter o nome numa rua, para mim o projecto é um sucesso na mesma. É o processo, e não o resultado, que vale. Aqui, o que é importante é que este nome, o nome que um cidadão anónimo como outro qualquer propôs, vai fazer parte do tecido da cidade, vai ficar no mapa. Acho que é a primeira vez que faço uma coisa que me vai sobreviver. Vai haver pessoas a viver e a morrer nessa rua, talvez alguns bebés venham a ser feitos nessa rua. Pensando bem, é incrível.

Quantas propostas receberam?

Estava um bocado inseguro sobre a adesão que iríamos ter. Quando fizemos o Name in Lights em Birmingham, houve milhares de propostas, mas basicamente apenas pedíamos às pessoas que nos enviassem um nome. Aqui fomos mais exigentes, as pessoas tinham de escrever um pequeno ensaio a explicar por que razão sugeriam aquele nome... Tivemos 253 propostas, mas, uma vez mais, não quero que isto seja sobre números e resultados. De qualquer modo, esperava que houvesse pelo menos cem propostas, portanto os resultados praticamente duplicaram as minhas expectativas.

Que tipo de nomes apareceram?

Todo o tipo de nomes. Desde figuras históricas até familiares dos proponentes, pessoas que obviamente não merecem uma rua mais do que qualquer outro cidadão, e até personagens de ficção. Apareceram muitas histórias tristes. Curiosamente, várias pessoas propuseram nomes de figuras históricas que na verdade já têm uma rua no Porto. O que mostra, por um lado, que as pessoas não conhecem bem a cidade, mas também que a Comissão de Toponímia está a fazer um bom trabalho.

No Porto, muitas pessoas propuseram nomes de jogadores de futebol... Pelo contrário, os nomes vencedores dos seus anteriores projectos eram sobretudo de cidadãos anónimos dedicados à comunidade... No Porto essas pessoas não apareceram?

No Porto, os cidadãos anónimos também foram maioritários. Mas claro que os nomes mais repetidos correspondem a jogadores de futebol. Em Londres, quando fizemos o Rooted in the Earth, a maioria dos votos foi para o “Baby Peter”, um menino que tinha sido assassinado pelo padrasto, num caso que sensibilizou imenso a opinião pública. Os juízes decidiram não escolher esse nome porque o espírito do projecto é celebrar figuras anónimas da comunidade, e não aquelas de que os jornais falam todos os dias. Vai ser interessante perceber como pensam os júris do Porto. Eu, pessoalmente, acho que esta é uma oportunidade para fazer uma coisa que de outra forma nunca seria feita: dar o nome de um cidadão vulgar a uma rua. Provavelmente, mais cedo ou mais tarde, esses jogadores de futebol acabarão por ter uma rua, com ou sem o Viver a Rua. Acho mágico passar numa rua e ver um néon enorme com o nome de uma pessoa que não faço ideia quem seja. É completamente a negação do star system que caracteriza a cultura contemporânea. Também por isso, gostava que a placa que vai ficar na rua não dissesse nada acerca da pessoa além do nome dela. Quero que as pessoas passem por ali e fiquem intrigadas. Se explicamos tudo, qual é a mística?

Trabalha muito com nomes. O que é que o fascina tanto nos nomes?

Os nomes são como guiões. Não os escolhemos, mas recebemo-los à nascença, e depois passamos a vida a desempenhá-los [performing]. Penso muitas vezes como é que seria a minha vida se tivesse outro nome, mesmo que tivesse exactamente a mesma cara e a mesma psicologia. Se tivesse um nome islâmico, por exemplo. Fascina-me o modo como os nomes operam. A primeira coisa que fazemos quando conhecemos um estranho é perguntar-lhe o nome – e é extremamente desconfortável falar com uma pessoa que não sabemos como se chama. Porquê? É só um nome. Acredito que, num certo sentido, os nomes são inescapáveis. O meu nome, por exemplo, significa escriba. E o que realmente faço na vida é escrever; neste caso, escrever os nomes das outras pessoas.

E na rua, como é que correu o processo?

Tivemos voluntários a ir para a rua para mobilizar as pessoas. E correu muito bem. Sobretudo porque houve desenvolvimentos inesperados, e coisas que são muito particulares do Porto.

Por exemplo?

Uma das coisas com que nos deparámos várias vezes foi a incredulidade das pessoas. As pessoas não acreditavam que isto era mesmo a sério. Diziam-nos: “Ah sim, é muito giro, mas claro que não vai acontecer.” A segunda pergunta era: “E o que é que a câmara vai achar disso?” É bastante evidente que os portuenses se sentem excluídos do processo político de tomada de decisões acerca da vida da cidade, que se sentem sem poder, empurrados para fora da infra-estrutura política. Não lhes parece que possam ter uma palavra a dizer sobre o rumo da cidade. E isso, para mim, provou a absoluta necessidade de um projecto como o Viver a Rua. O que estamos aqui a fazer é a dizer às pessoas: “Esta cidade é vossa. Os burocratas que estão no poder actuam em vosso nome, mandatados por vocês, para fazerem aquilo que vocês acham melhor para a cidade.” Ao permitirmos que escolham o nome de uma rua, estamos a encontrar uma maneira muito simples de dar aos cidadãos uma voz directa na coisa pública. Outra coisa curiosa: as pessoas queriam saber que tipo de rua estava em causa: “É que se for uma rua assim muito pequena não estou interessado.” Fez-me pensar no tormento que é estar dentro de um aeroporto gigante, tipo Charles de Gaulle ou JFK, a correr para apanhar um avião, ou a desesperar porque as malas não aparecem. Os aeroportos são sítios desagradáveis e impessoais, e ainda assim a maior homenagem pública que se pode fazer a uma pessoa é dar o nome dela a um aeroporto. Depois da morte da princesa Diana houve uma enorme discussão em Londres para decidir se se devia dar o nome dela ao aeroporto de Heathrow.

Por falar em discussão, o projecto incluiu uma série de workshops. Como correram?

Organizámos workshops de escrita criativa, de história local e de reflexão sobre conceitos de cidadania e de família. A ideia não era garantirmos, através dos participantes nos workshops, um número mínimo de nomeações. Mas foi compensador que esses workshops nos tenham levado a trabalhar com escolas, e que vários grupos de alunos tenham feito propostas de nomes.

O que é que aprendeu sobre o Porto?

Aprendi que as pessoas do Porto adoram a cidade, apesar de passarem a vida a resmungar e queixar-se dela. Quase todas querem saber o que eu acho do Porto comparado com Lisboa, mas eu ainda não fui a Lisboa.

No Reino Unido não existe uma divisão semelhante?

No Reino Unido todas as pessoas que vivem fora de Londres odeiam Londres e todas as pessoas que vivem em Londres seriam incapazes de viver noutro lado.

E como lhe pareceu a cidade em termos de participação cultural?

Acho que o Porto está num ponto de viragem. Quando vim cá em Novembro, a cidade pareceu-me envelhecida; agora, nesta segunda visita, o tempo estava fabuloso e a cidade saiu completamente cá para fora. É incrível a quantidade de coisas que aconteceram na mesma semana numa cidade tão pequena: a Feira do Livro, o FITEI, o Serralves em Festa, o Clubbing...

Quais são os pontos fortes e os pontos fracos da cidade, em termos de participação artística?

Prefiro falar em bons e maus exemplos. Um exemplo brilhante é o Clubbing. Estive lá numa das últimas noites e vi um público completamente diversificado a responder com igual entusiasmo a programas complexos de música erudita e a sessões altamente experimentais de electrónica. Um mau exemplo, tenho de admitir, é o Serralves em Festa. Foi uma enorme desilusão. Achei que os projectos apresentados eram paternalistas, para não dizer mais. O mínimo denominador comum, absolutamente: novo circo, teatro de rua, balões, palhaços em andas... A arte contemporânea não é aquilo. É uma pena que consigam reunir tanta gente naquele espaço e que depois o Serralves em Festa não passe de um dia no parque.

A câmara desinvestiu na cultura nos últimos anos. É um erro, nesta fase de euforia à volta das indústrias criativas?

Acho que toda a participação financeira, pública e privada, nas práticas artísticas é saudável. Já se percebeu que, nesta área, os subsídios geram efectivamente emprego e riqueza. Nesta fase de severa crise económica, é óbvio que é politicamente mais aceitável cortar na cultura, mas a cultura é o que nos define como civilização. Logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, quando a Inglaterra quis diminuir os gastos com a cultura, o Winston Churchill (não acredito que estou a citar o Winston Churchill) perguntou: então para que é que estivemos a lutar? Não pode haver Europa sem cultura. Ouvi falar do Rivoli mal cheguei ao Porto, falaram-me da ruptura que houve com a sua cedência a um produtor comercial. Mas o que me parece é que, quaisquer que sejam os problemas de bastidores, o Porto tem uma vida cultural vibrante. Mas é claro que é sempre possível fazer mais, e sem gastar muito mais dinheiro. Esta cidade tem imensos prédios e lojas ao abandono, a câmara podia e devia relaxar as regras de acesso e ocupação desses espaços, ceder licenças temporárias para a apresentação de espectáculos; não há razões para que os artistas tenham dificuldade em encontrar espaços. Acima de tudo, o papel do poder local é activar a noção de que as coisas são possíveis. E aqui, claramente, pelo menos no que depende da câmara, os artistas acham que as coisas são impossíveis.

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