Se o jornalista investigar, "não há violação do segredo"

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O autor da reforma penal de 1987 considera que "o processo penal não deve ser público" desde o início. E critica a pressa nas revisões da lei Sérgio Azenha (arquivo)

É apenas um exemplo: houve um homicídio, mas o cadáver não aparece. Surge um suspeito. Há fortes razões para supor que é o autor do crime. A polícia submete-o a tortura e ele, sob tortura, confessa. E diz onde escondeu o cadáver. "Isto é válido em processo penal? Não é. Não é, seguramente. O tribunal, o que tem de dizer é: 'Como esta prova é inválida, absolvo'", explica Jorge Figueiredo Dias, professor catedrático e um dos maiores especialistas portugueses de direito penal. "Nem toda a prova historicamente válida é processualmente válida..." sublinha, em entrevista ao PÚBLICO.

Como regra, acha que o processo penal deve ser secreto. Defende o auto governo das magistraturas. Contraria a ideia de que o Ministério Público está em risco de perder a sua autonomia e critica a “pressa” com que têm sido feitas as revisões da lei penal. Jorge Figueiredo Dias presidiu à grande reforma do Código Penal de 1987 que revogou o Código Penal existente em Portugal desde 1852. No próximo dia 27, na Guarda, é distinguido com o Prémio Eduardo Lourenço atribuído pelo Centro de Estudos Ibéricos. Cabe ao procurador-geral da República, Pinto Monteiro, fazer o seu elogio.

Uma das questões que mais dúvidas tem levantado em torno do processo Face Oculta relaciona-se com as escutas telefónicas. Sei que não quer referir-se ao caso concreto, mas, em tese geral, afinal, em que condições é que as escutas se podem anular?

Se se considerar que a escuta foi obtida em contravenção com as leis vigentes. É matéria que se inclui nas chamadas provas proibidas, Reconheço que é uma coisa em que os aperfeiçoamentos da legislação, as revisões, têm de ser constantes, atendendo à evolução da tecnologia. O que é preciso ter sempre em conta é a questão do equilíbrio entre valores contrapostos.


O público devia compreender isto: Em processo penal, nem toda a prova historicamente válida é processualmente válida... [Ou seja, o processo penal tem regras que impedem que certos factos que podem ter acontecido na realidade, sejam considerados provados Basta que sejam adquiridos de forma ilícita]


São os princípios do Estado de Direito...

Os princípios do Estado de Direito, os direitos fundamentais, os direitos do Homem.


As pessoas não percebem porque não podem ser consideradas válidas as escutas de uma conversa em que alguém que fala com outra pessoa que está a ser legalmente escutada, revela factos que são considerados indícios de crime.

A escuta não serve para saber se, por exemplo, durante esta entrevista, eu consegui deitar a mão à sua bolsa e consegui de lá tirar 20 euros que meti ao bolso. Isso não serve...É uma coisa curriqueira. E a escuta é, por sua própria natureza, uma invasão brutal da intimidade. Se nós temos crimes contra a intimidade, depois vamos pôr a intimidade a nu? Daqui a pouco estava-se a usar as escutas para casos de divórcio ou outra coisa assim...


Mas, e se daí resultar a notícia de um crime?

Não! Não. Tem de ser um crime do “catálogo”. Que diz que a escuta telefónica é admissível relativamente a uma lista de determinados crimes. Crimes de homicídio, terrorismo, etc puníveis com penas superiores a x anos. Os que não forem superiores a x anos, não estão no catálogo. E não pode haver escutas lícitas. Claro, pode apanhar-se uma escuta ou outra... Pois, mas essa prova não pode ser feita em tribunal. Isto num país tão cioso de ser um país democrático, é óbvio.


O que é que é óbvio?

Óbvio que a escuta é uma coisa excepcional. A questão da prova ilícita começou com o famoso caso Miranda versus Arizona, nos Estados Unidos, na luta sem quartel ao tráfico e ao consumo de droga. E há um indivíduo que é identificado pela polícia, dão-lhe voz de prisão, ele foge para uma casa de banho. A polícia deita a porta abaixo e ele efectivamente tinha no bolso uma série de pacotinhos de heroína com ele. Mas ele não foi condenado.


O Supremo Tribunal dos Estados Unidos decidiu isso, porque a pessoa tem de ser avisada pela polícia de que está presa e tudo o que diga pode ser usado contra ela, é o que vemos nos filmes. Hoje, é óbvio. Na altura, foi o fim do mundo. A opinião pública entrou em paranóia... ‘Então o tipo tinha pacotes...’


Muitas vezes, a lei não deixa fazer justiça.

Não é verdade. A lei faz justiça porque entra em conta com a necessidade de lutar contra o tráfico de droga, neste caso, mas também com os direitos individuais e fundamentais da pessoa humana.


Que devem prevalecer...?

Nuns casos, sim. Noutros, não. Os valores conflituam segundo a sua importância social. Num caso, é dada prevalência a um, noutro, é dada prevalência a outro.


Nesta polémica toda, diz-se que se está a dar excessiva importância a questões formais e a deixar de lado a substância...porque há uma suspeita de atentado ao Estado de Direito. Não sabia que esse crime existia...

Eu sabia, mas já não me lembrava. Não está no Código Penal, é uma lei sobre a responsabilidade dos titulares dos cargos públicos. É uma lei que a Assembleia fez para especializar a actuação dos titulares de cargos públicos. O nome, Atentado ao Estado de Direito, é um nome pomposo... e tem de ser interpretado como todas as leis. Razoavelmente.


Qual é a sua opinião? Está tudo muito politizado?

Tudo, não. Mas há muitas coisas, neste momento, que estão excessivamente politizadas


Uma das questões que também tem sido muito criticada é à violação do segredo de justiça.

O actual regime do segredo de justiça estabelece, em princípio, como regra, que o processo penal é público desde o seu primeiro momento. Sempre defendi o contrário. Acham que isto é uma maior democraticidade do processo? Bem, têm aí o resultado.


Um dos argumentos, é que contribui para uma maior transparência...

No processo penal, não há praticamente nada em que se possa mexer, se não se tiver a consciência de que se está porventura a tornar mais nítido um certo valor da comunidade e se está a desfavorecer outro. Todas as questões são conflituais. Não há forma mais transparente (digo isto a brincar) do que as assembleias populares...são a favor da transparência. E quais são os valores que ficam prejudicados? A honra das pessoas que são atingidas, o estigma que nunca mais lhes sai de cima, por causa da excessiva mediatização destas questões, porventura o interesse de todos nós...


O que sucede é que há hoje nas nossas sociedades novos perigos que, no limite, põem em causa a sobrevivência da própria humanidade como o ambiente, a genética, o terrorismo, a energia atómica. E quem são as vítimas potenciais? Toda a gente. Pode-se brandir contra estes interesses, a transparência? Pode? É que quando se acentua um valor, por exemplo, o da defesa dos arguidos, tem de se fazer isso com a consciência de que ao aumentá-lo, está a desfavorecer-se a vítima.


Está então contra a manutenção do actual sistema do segredo de justiça?

Acho que em princípio, o processo não é público. Em princípio, é secreto. Não me digam que um processo relativo a um núcleo terrorista, vai começar por ser público em princípio. Não pode ser.


E como se concilia o dever e o interesse do jornalista em noticiar, com esta questão? Devem ou não os jornalistas estar sujeitos ao segredo de justiça?

Aí sempre tive uma ideia algo diferente da que vigora. A minha ideia foi esta: se a forma como o jornalista obteve a informação é criminosa, então não pode divulgar... mas se, por exemplo, qualquer coisa vem ao seu conhecimento, ou através de uma terceira pessoa, ou por um acaso, ou por investigações... tenho a ideia de que, da parte do jornalista, não há violação do segredo de justiça.


Teve a responsabilidade de presidir à grande reforma da lei penal que vigorava em Portugal desde 1852 e que resultou nos Códigos Penal e de Processo Penal de 1987. A partir daí, fizeram-se vários ajustes e, recentemente, em 2007, uma revisão mais extensa que levou a muitas alterações. Muita gente criticou o facto de não ter sido convocado para integrar a última comissão de revisão. Levou a mal?

No que me toca pessoalmente, não há problemas... O que sucedeu, é que em 1994, 95, fiz saber que não estava interessado. Fiz ininterruptamente parte de comissões, como presidente ou como vogal desde os 26 anos... e disse: chega. Mas nunca me pus fora das questões. A verdade é que, depois de 94, não fui convidado para mais nenhuma comissão porque sabiam que eu não queria...Por exemplo, consultavam-me e eu dava um parecer. Mas não fiquei magoado. Pelo contrário, senti alívio.


É mais fácil estar de fora?

A maior parte das pessoas não tem consciência do que é de difícil, de complexo e de perigoso mudar que seja uma vírgula a uma lei.


Acha que isso tem sido feito com alguma ligeireza?

Acho que tem sido feito com demasiada pressa.


E as consequências?

São péssimas. Não sou obviamente contra ajeitamentos, amaciar as arestas... são as tais revisões. É uma actividade menor mas para a qual é preciso um trabalho incalculável.


Um dia, um ministro da Justiça acabado de chegar ao Ministério entregou-me um pré-projecto de reforma ao Código do Processo Penal. Eu li aquilo, uma dezena de artigos, como uma tarefa de relativa facilidade. Quando me dispus a fazer o parecer, é que vi o que envolvia. Queriam alterar o segredo de justiça, aquilo até podia parecer aceitável, só que tinha repercussões brutais sobre o próprio processo. Era a descaracterização do figurino do Código e pronto, lá dei um parecer desfavorável.


O que diz do anúncio da criação, pelo ministro da Justiça, de uma nova comissão para introduzir mais alterações às leis penais?

Será mais uma pequena revisão. O que sucedeu é que o Observatório da Justiça fez um relatório em que, numa alínea, diz que as conclusões a que chegaram podem dar origem a propostas de alteração legislativa. São importantes a generalidade delas. Já ouvi dizer que representam um passo para pôr de lado a reforma de 2007...


Por exemplo, o caso da prisão preventiva. É um falso problema. Nenhum crime exige, só atendendo ao crime, que se prenda preventivamente, nem nenhum crime impede que, em certos casos, se prenda preventivamente. Há casos em que não é preciso, não é adequado. O que depende da imposição ou não imposição da prisão preventiva é, pura e simplesmente, a necessidade cautelar. De acautelar a sociedade, prendendo aquele indivíduo... Isto já estava claríssimo desde o código de 1987 e até antes...depende. O que era necessário era a interiorização de que tudo depende da necessidade cautelar, ponto parágrafo.


Acho que o actual regime talvez tenha exagerado, deixando de fora da possibilidade de prender preventivamente, crimes que podem já exigir a prisão preventiva, uma vez que são puníveis com mais de cinco anos e um crime punido com pena superior a cinco anos, já é o que chamamos de média criminalidade.


Como vê esta crise aberta na Justiça, toda esta confusão? Com desgosto?

Claro, com desgosto, sim. Mas se me perguntar se vejo com surpresa, digo-lhe já que não. O sistema de Justiça anunciava uma possibilidade de entrar em crise, nomeadamente, o governo da própria Justiça, ou como alguns gostam de dizer, o auto governo das magistraturas. A favor do qual eu sou, mas que implicava pequenas alterações a nível constitucional que permitissem que verdadeiramente as magistraturas se auto governassem. Não vou dizer que é causa única das actuais dificuldades...


O que quer dizer concretamente com auto governo das magistraturas?

Que as magistraturas, e isso é desejável, governam-se a si próprias. São um poder do Estado constitucional que deve ser diferenciado do poder executivo e do poder legislativo.


Tem a ver com a importância do princípio da independência dos juízes?

Mas não é a independência individual, é a independência do próprio corpo da magistratura. Isso implica um Conselho Superior da Magistratura (CSM) que não existe. Agora, nunca concordei com o que lá existe. Um certo número de juízes de carreira e, depois, de personalidades políticas escolhidas pela Assembleia da República. Claro que a escolha de um qualquer CSM tem de ser escolha do Parlamento, para mim é quase um dogma. O poder supremo está na Assembleia da República, obviamente.


Qual é para mim, o grande defeito? As personalidades que fazem parte do CSM não ganham, com isso, o estatuto de juízes. Se são advogados, continuam a ser advogados, se são professores continuam a ser professores... Para mim, a pessoa que subisse ao CSM que, no meu ponto de vista, deveria ser um dos órgãos mais fundamentais de toda a estrutura do Estado, passava a ter o estatuto de juiz e, portanto, de personalidade independente. Que se advoga, tem de deixar de advogar, se é Ministério Público, têm de deixar de sê-lo, etc.


Critica esta composição mista do CSM?

Não é esta composição mista. Em rigor, no CSM que tenho na minha cabeça, podem ser todos juízes, ou do MP ou advogados, ou professores de direito. Não interessa, isso é a AR que diz. Agora, suponha, uma pessoa é advogado, foi eleita para o CSM, passa a ter estatuto de juiz. Ganha o estatuto pleno de juiz.


Atribui a esta questão uma das razões da crise da Justiça?

Sim, é uma das razões. O CSM e isso só é louvável, procura do meu ponto de vista pessoal, restringir muito as suas funções. Deveria, a partir daí, por x anos, ser constituído por pessoas com o estatuto de juiz e daí poder governar


Defende então mais poder para o CSM?

No pressuposto de que o Conselho seja constituído só por pessoas que têm o estatuto e portanto a independência dos juízes.


E acha que seria um contributo para solucionar esta crise?

Estaria mais à vontade para solucionar eventuais problemas disciplinares, de governo daquele corpo da magistratura


Quando diz isso, está a privilegiar o estatuto dos juízes na administração da justiça, comparativamente aos outros operadores judiciários, como os advogados os magistrados do Ministério Público...

Falo de quem tem o estatuto de juiz e, portanto, o estatuto de independência. O Ministério Público não tem. Nem deve ter. É uma magistratura hierarquizada, cuja cabeça é o procurador-geral da República. No resto, na apreciação dos casos, aí deve ser independente, no sentido de que deve ser objectivo.


Como vê as denúncias recentes relativamente ao risco da perda de autonomia do Ministério Público em Portugal?

São problemas que deviam ser minimizados. Não há razão nenhuma, do meu ponto de vista, para estas querelas de natureza corporativa entre o Ministério Público e juízes. Sem querer medalhas de nenhuma espécie, eu fui pelo meu ensino anterior ao 25 de Abril, um dos que estiveram na origem da atribuição de um estatuto de autonomia ao Ministério Público. Defendo-o, não quero o modelo de muito outros países de um Ministério Público subordinado ao executivo.


Em meados de 1990, fui relator geral no Congresso da ONU do tema precisamente do MP. E defendi perante os representantes de praticamente todos os países do mundo, a figura do MP tal como estava desenhada no sistema jurídico português. Um MP autónomo relativamente ao poder executivo. Constituído por magistrados, que não são independentes como os juízes porque por sua essência, o MP deve ser uma instituição hierárquica, mas autónoma relativamente ao poder executivo. E a reacção que tive, generalizada dos estrangeiros, foi ‘isso é que era bom (...) nós nos nossos países não temos nenhuma hipótese de fazer vingar a ideia de retirar ao poder executivo o domínio do MP'.


Considera que a autonomia do MP está ameaçada?

Se a autonomia como forma jurídica de concepção do MP está ameaçada? Digo-lhe redondamente que não. Não vejo... A figura do MP está preservada. Continua a ser, como deve, uma estrutura disciplinada dentro da tal organização hierárquica. Esta deve existir, deve ser acentuada e os magistrados do MP não têm que se revoltar quanto ao facto de receberem ordens dos seus superiores hierárquicos. Outra coisa é um certo mau estar entre a magistratura do MP e a magistratura judicial... Quantas vezes oiço pessoas responsáveis dizerem que o MP é uma entidade independente... não é nada. Independente é a magistratura judicial.


Actualizada às 9h30
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