Inteligência artificial na prática clínica: presente e futuro
Uma das utilizações mais imediatas da IA é o aumento da capacidade de análise de grandes volumes de dados médicos, nomeadamente exames de imagem, histórico das pessoas e informações genéticas.
Participei recentemente nos Encontros da Primavera - Oncologia, iniciativa com 20 anos de existência, que este ano reuniu 800 profissionais da área da saúde (110 palestrantes e moderadores). Sérgio Barroso, oncologista e um dos responsáveis pelo desenvolvimento de um congresso anual que se tornou referência em Portugal, esclarece que o objetivo foi sempre o de “elevar o nível da oncologia portuguesa através da formação aos internos e jovens especialistas e da atualização dos profissionais mais experientes”.
Um dos temas que me despertou maior interesse nos Encontros da Primavera foi o da aplicação da inteligência artificial (IA) na prática clínica, que promete revolucionar a forma como são proporcionados os cuidados médicos e como se enfrentam os obstáculos da medicina.
Uma das utilizações mais imediatas da IA é o aumento da capacidade de análise de grandes volumes de dados médicos, nomeadamente exames de imagem, histórico das pessoas e informações genéticas. “Há muita informação que não é trabalhada e que pode contribuir para melhorar os índices de tratamento”, afirma Miguel Barradas, estratega de tecnologia. “Na saúde, há muito trabalho administrativo feito pelo médico e a IA pode tirar-lhe as tarefas rotineiras para que não tenha de olhar tanto para o ecrã e possa olhar mais para a pessoa que tem à sua frente, criando mais empatia”, acrescenta.
A IA pode ainda facilitar diagnósticos precoces e prever riscos de saúde, com a vantagem de o fazer, graças aos dados individuais recolhidos, de forma personalizada. Otimizar a eficácia terapêutica, reduzindo assim os efeitos secundários dos tratamentos oncológicos, monitorizar continuamente e em tempo real os tratamentos e alertar sobre quaisquer alterações significativas nos sinais vitais das pessoas são outras das aplicações úteis da IA.
Paralelamente, estão a ser desenvolvidos algoritmos para analisar imagens de raios-X, ressonâncias magnéticas e tomografias computadorizadas com o objetivo de detetar anomalias com alta precisão. Além das vantagens evidentes para o tratamento individual, há ainda um potencial de melhoria da eficiência operacional em hospitais e clínicas. “Esta nova era e forma de trabalhar vem ajudar os clínicos. Não sei onde isto nos vai levar, mas a ideia não é a de substituir os profissionais de saúde, sempre fundamentais na tomada de decisão”, ressalva Miguel Barradas.
Daniel Gomes Pinto, diretor do Serviço de Anatomia Patológica do Hospital Garcia de Orta, vê com bons olhos a utilização da IA: “É uma ferramenta poderosa. No caso da anatomia patológica, agora temos uma máquina que faz o trabalho todo. Gere as amostras, analisa, deteta e gradua. O patologista já não precisa de ir ao microscópio, vê o resultado no computador e valida-o.”
Inquirido sobre se isso significa que a substituição dos patologistas por uma máquina pode estar para em breve, o especialista mostra-se hesitante: “Creio que não acontecerá tão cedo, o que vejo é um enorme aumento da produtividade, rentabilidade e diminuição do tempo de resposta.”
“A evolução é imprevisível”, afirma Luís Rosa, médico radiologista, que acredita que “se houvesse uma máquina que conseguisse fazer o que os radiologistas fazem, já não existiam radiologistas”. Para Luís Rosa, “a lógica do sistema funciona como a dos operadores de portagens que vão ficando sem emprego à medida que aumenta a adesão à Via Verde”. Todavia, o clínico é favorável à utilização da IA na protocolização de exames, reconstrução de imagens e redução de ruído, entre outros, e reforça que a tecnologia “amplifica o rigor diagnóstico, tanto na identificação, quer na caracterização e quantificação volumétrica de lesões, mesmo em fase embrionária”. Por fim, deixa um alerta: “O radiologista tem sempre de validar tudo.”
Há, contudo, algumas coisas que a IA ainda não pode fazer pelas pessoas que se encontram a lidar com a doença oncológica ou que já a ultrapassaram.
Sofia Viamonte, especialista em Medicina Física e de Reabilitação, destaca que a doença cardiovascular “é uma importante ocorrência nos sobreviventes de cancro, devido à interação dinâmica entre a acumulação de fatores de risco cardiovascular e os efeitos cardiotóxicos da terapêutica oncológica com as sequelas do envelhecimento e descondicionamento físico”. A diretora do Centro de reabilitação do Norte da ULS Gaia e Espinho destaca os benefícios de programas de exercício físico, após adequada avaliação do risco, ao longo da jornada da pessoa com doença oncológica, bem como “a integração em programas de reabilitação cardio-oncológica, que incluam não só o exercício físico, mas também o aconselhamento nutricional individualizado, suporte psicoemocional e educação para a saúde visando a otimização do controlo dos fatores de risco cardiovascular”.
Por razões pessoais, a intervenção de Sofia Viamonte tocou-me de forma profunda. Porquê? Porque os tratamentos oncológicos são, muitas vezes, devastadores a vários níveis. Fala-vos a voz da experiência.
Ana Joaquim, investigadora na Organização Europeia de Investigação e Tratamento do Cancro, reforça a opinião de Sofia Viamonte: “a reabilitação é um tratamento individualizado de acordo com as características de cada pessoa e tem um nível de importância elevado e custo baixo. Reflitam, por favor, pois o nível de evidência científica da reabilitação é elevado nalguns setores”.
Permitam-me uma adenda: a reabilitação é sobre aumentar a qualidade de vida de quem passa pelas agruras dos tratamentos oncológicos, tanto no presente da doença, como no futuro da pessoa que a viveu.
Por fim, um sentido agradecimento a todos, sem exceção, que contribuem para salvar as vidas e reduzir o sofrimento de quem padece de doença oncológica.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990