25 de Abril de 1974 em 2024

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.

Ouça este artigo
00:00
01:53

à minha mãe, Celeste

Quando as pessoas correram ruas abaixo
e nem se lembraram de olhar para o céu.
Quando a diferença paga pelo sangue
foi a razão do sonho ao madrugar.
Quando as mãos calejadas dos velhos
rimaram com o furor das raparigas.
Quando uma estrela no alto dormiu
pela primeira vez em 48 anos
o sono de imagens tranquilas,
as melodias raras dos crentes.
Quando o choro de um bebé foi
aquele poema que aquele homem
sabia de cor dito (por fim!) em voz alta.
Quando uma flor brotou num círculo de terra
e não noutro, por nenhum motivo.
Quando as bocas ficaram cheias
de coincidências.
Quando o futuro entrou porta adentro
e o povo saiu porta fora,
não fosse mais uma partida de mau gosto.
Quando nasceu a alegria e todos esqueceram
a canção de parabéns.
Quando num só queixo se digladiavam
risos chispas sexos e miras.
Quando numa lágrima uma fisga.
Quando ninguém pensou para onde ia
mas quem trazia pelo braço.
Quando ninguém se voltou
para não deixar escapar o braço no braço.
Quando as fotografias saíram todas desfocadas.
Quando a História não se acostumou à própria clareza.
Quando o mesmo selim serviu todas as alturas
e as rodas desenhavam mapas no asfalto.
Quando o fogo era uma invenção tão nova
quanto certas palavras.
Quando, despidos de recomendações,
não mais se assistiu à passagem dos corpos,
quando o jeito singelo de ficar parado
à velocidade da luz.


Maria Brás Ferreira (Lisboa, 1998) é doutoranda de Estudos Portugueses, na NOVA-FCSH, estando a preparar uma tese sobre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira, a partir do conceito de melancolia. Participou em antologias, tendo publicações, de poesia e ensaio, em revistas nacionais e internacionais. É co-editora da revista Lote. Publicou dois livros de poesia: Hidrogénio (2020) e Rasura (1.ª edição de 2021; 2.ª edição revista, em 2024). Faz crítica literária no jornal Observador e crítica de arte na Umbigo Magazine.

Sugerir correcção
Comentar