Explosão de moscas atormenta galegos — o clima e o abuso do estrume explicam o problema

Práticas agrícolas desadequadas e o aquecimento global, que permite aos insectos reproduzirem-se durante todo o ano, causam explosão de populações de moscas na Galiza.

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Pelo menos 20 municípios galegos queixam-se de explosões da população de moscas-domésticas Catherine McQueen/Getty Images
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Parece ter havido uma explosão de moscas em vários municípios da Galiza, alguns perto da fronteira com Portugal. Nuvens destes insectos voam e aterram em todo o lado, deixando humanos e animais enlouquecidos. As alterações climáticas, que fazem com que os Invernos sejam mais amenos, e o aumento da agricultura intensiva, com abuso e má utilização do estrume, estão por trás do que em alguns locais parece uma praga bíblica. “É uma tempestade perfeita”, comentou o zoólogo Salustiano Mato, da Universidade de Vigo.

É enlouquecedor”, disseram ao jornal espanhol El País moradores dos municípios de Tomiño e Narón, que já lidam com o problema há uns quatro anos.

O primeiro é um concelho raiano na província de Pontevedra, e está integrado com o concelho português de Vila Nova de Cerveira, do lado de cá do rio Minho. Já o segundo fica na Coruña, no topo noroeste da Galiza. Entre ambos, distam cerca de 200km.

Mas padecem do mesmo problema com as moscas uma vintena de municípios galegos, espalhados por todo o território, segundo diz a Federação Galega de Municípios e Províncias (Fegamp), que pediu à Junta da Galiza a adopção de medidas para resolver o problema.

É tal a quantidade de moscas, que afecta a saúde mental dos habitantes”, afirmou Marián Ferrero, a presidente da Câmara de Narón, em pé de guerra contra os insectos, citada pelo jornal digital Galicia Press.

Mas os cientistas e ambientalistas dizem que não se pode chamar "praga" a estas “pululações de moscas”, ou multiplicação abundante e rápida, como se chama ao fenómeno em português, explica Ana Aguiar, investigadora do GreenUPorto – Centro de Investigação em Produção Agro-Alimentar Sustentável e professora da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

“Podem acontecer a qualquer momento, mas é pior em alguns momentos, por exemplo quando os agricultores espalham o chorume nos campos. Provavelmente, é o que aconteceu agora na Galiza”, contou ao Azul.

Chorume é uma palavra incomum, que se refere à mistura líquida com dejectos dos animais, matérias orgânicas em putrefacção. É o que se chama ao estrume, mas enquanto líquido.

“O chorume é alimento para as moscas”, diz Ana Aguiar. “E, nas últimas semanas, ter-se-ão juntado na Galiza todas as condições para uma rápida pululação de moscas: havia temperatura, humidade, alguma chuva e chorume espalhado pelos campos. Nestas situações, as gerações sucedem-se e sobrepõem-se rapidamente, e o número de moscas aumenta exponencialmente”, explica a cientista portuguesa.

Agricultura mata comedores de insectos

É a tal “tempestade perfeita” de que fala Salustiano Mato, que estudou Tomiño.

“As alterações climáticas estão a fazer com que nesta zona os invernos sejam suaves, pelo que as moscas podem reproduzir-se todo o ano”, começou o cientista por explicar.

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Em cerca de dez dias, as moscas tornam-se avós Jenny Dettrick/Getty Images

“Ao mesmo tempo, a superfície de cultivo no concelho de Tomiño aumentou muito nos últimos anos, e o uso de mais fitossanitários [técnicas ou produtos para reduzir pragas e agentes patogénicos nas culturas agrícolas, que vão desde o uso de variedades resistentes até ao uso de pesticidas e herbicidas] faz diminuir as populações de animais que comem insectos”, explicou o zoólogo, numa resposta escrita a perguntas do Azul, enviada por email.

​Benito García Carril, da Associação Galiza Ambiental, deu como exemplo o desaparecimento de espécies insectívoras de aves como o andorinhão, a andorinha ou o pardal.

Se há menos insectívoros, há menos predadores para comer as moscas. “Com estas condições, a que se junta a humidade do rio – já que as explosões de moscas acontecem a menos de um quilómetro do rio Minho –, o elemento determinante é o uso de adubo com esterco nos campos”, adianta Salustiano Mato.

“Nesta época do ano, os agricultores estão a preparar os terrenos para semear o milho e, com o objectivo de aumentar a matéria orgânica do solo e alcançar melhores produções, adicionam chorume, espalhando-o sobre o solo e depois incorporando-o”, explica Ana Aguiar. “É uma boa prática, pois aquilo que é um subproduto da produção de leite (vacas leiteiras) é usado em benefício do solo (e da produção de milho). Sendo totalmente utilizado não chega, por isso, a ser um resíduo; é uma lógica de economia circular, que tanto se fala hoje”, salienta.

Tráfico de resíduos na fronteira

O problema é quando se abusa deste fertilizante, ou se utiliza de forma desadequada, adiantou Salustiano Mato. “Quando o esterco não maturado é espalhado sobre a superfície dos campos e permanece sem ser enterrado durante um tempo prolongado, constitui um caldo de cultura ideal para estes insectos”, explicou o catedrático de Zoologia da Universidade de Vigo.

"Há muito a dizer e analisar sobre as práticas agronómicas aqui", afirmou ​Benito García Carril, da Associação Galiza Ambiental, em declarações obtidas por email. Mencionou "a prática generalizada de utilização de lamas de todos os tipos (urbanos e industriais) para preparar correctivos orgânicos para fertilização, quer por aplicação directa, quer sob a forma de solos tecnológicos".

"É uma prática muito difundida na Galiza e na região norte de Portugal. De facto, existe um intenso tráfego de veículos através da fronteira com este tipo de resíduos que são aplicados nas culturas dos pomares, e também nas vinhas de ambos os lados do [rio] Minho. A Guarda Nacional Republicana e a polícia espanhola investigam e investigaram esta questão, mas a falta de controlo no transporte e troca de resíduos tem essas consequências", salientou Benito García Carril.

Na Galiza sempre houve quintas e sempre se usou chorume. Mas antes era habitual fazer-se compostagem antes de o depositar nos campos, e assim não era já um convite para as moscas. “Antes adubava-se os campos uma a duas vezes por ano, mas agora, com a produção intensiva, é de Fevereiro a Novembro”, fez notar Isaac Acuña, habitante de Tomiño, uma das localidades mais afectadas, citado numa reportagem do jornal El País.

Moscas-domésticas

As moscas que pululam em nuvens que parecem incontroláveis são vulgares moscas-domésticas, nada mais exótico do que isso. Estes episódios costumam durar dois ou três dias, mas podem durar mais… “Se o chorume permanecer no tempo sem ser integrado no solo e o tempo estiver seco e soalheiro, podem emergir mais nuvens de moscas e o episódio durar uma semana ou até duas semanas”, salienta Salustiano Mato.

Esta espécie (Musca domestica) evoluiu ligada às populações humanas. “Não transmitem doenças. Mas são um problema de insalubridade, porque poisam sobre superfícies ricas em agentes patogénicos e transmitem-nos, por contacto com alimentos em que podem poisar”, alertou o cientista espanhol.

É curta a vida destes insectos, entre sete e 30 dias. As fêmeas acasalam uma única vez, mas podem pôr ovos entre quatro e seis vezes, e 75 a 150 ovos em cada uma das posturas, e escolhem matéria orgânica em decomposição, sobretudo estrume, para o fazer.

“Num dia ou dois, sai uma larva dos ovos, que quatro dias depois forma uma pupa, a fase de desenvolvimento antes da mosca adulta”, explica o zoólogo. Passados outros quatro dias, as pupas eclodem e surge a nuvem de moscas, que atormenta quem encontra pela frente.

“Se as condições forem óptimas, uma geração pode completar-se numa semana”, diz Ana Aguiar. O que são condições óptimas? “Haver alimento disponível, temperatura e humidade adequadas.” A temperatura óptima situa-se entre 20 e 35 graus Celsius, dependendo da fase de desenvolvimento, adianta. “A humidade é essencial, pois só assim se garante uma elevada taxa de sobrevivência dos ovos e das larvas.”

Nas últimas semanas, ter-se-ão juntado na Galiza todas as condições para uma rápida pululação de moscas, salienta a cientista portuguesa: “Havia temperatura, humidade, alguma chuva e chorume espalhado pelos campos. Nestas situações, as gerações sucedem-se e sobrepõem-se rapidamente e o número de moscas aumenta exponencialmente.”

"É um problema de qualidade de vida de pessoas e animais", salientou Benito García Carril. E as moscas podem ser só o princípio: "Algo semelhante acontece localmente com espécies como os mosquitos... E aqui podemos estar a falar de problemas futuros mais graves para a saúde pública, devido à transmissão de doenças", frisou.

Em Portugal só se as condições se repetirem

Não devemos propriamente temer que o fenómeno se alastre a Portugal, mesmo nas zonas fronteiriças. “Do nosso conhecimento não nos parece que essa situação venha a acontecer em Portugal, nomeadamente na Região de Entre Douro e Minho, por não ter havido essa simultaneidade temporal do espalhamento do chorume com temperaturas elevadas e chuva”, sustenta Ana Aguiar. “O mês de Abril foi quente, mas seco, e o mês de Maio tem sido frio.”

Além disso, pelo que se vê na Galiza, o fenómeno ocorre em pequenas manchas por todo o território, o que faz pensar em fenómenos localizados. “Mas pode acontecer em Portugal, se estas condições se repetirem em alguma localidade”, avisa Salustiano Mato.

Aliás, pontualmente, há notícia de fenómenos semelhantes, como quando no Verão de 2017 parecia haver ainda mais moscas do que costume na área da Comporta, na península de Setúbal. O recurso a estrume de aves para fertilizar os quase 600 hectares de solo arenoso na herdade de Monte Novo do Sul, propriedade da empresa Cropinvest — Agrícola, foi o elemento catalisador de “uma praga de moscas que está a transformar num inferno o dia-a-dia da população residente e visitantes dos concelhos de Alcácer do Sal e de Grândola”, reportava o PÚBLICO então.

Desequilíbrio do ecossistema

Estes fenómenos de pululação de moscas são sinais de desequilíbrio dos ecossistemas e o que é preciso fazer, para resolver o problema, é tomar medidas para os reequilibrar, afirmou o cientista. Mas a curto prazo, o que é urgente é ser cuidadoso nas práticas de fertilização dos campos agrícolas, salienta.

“O ideal é compostar o estrume antes de o usar”, aconselha Salustiano Mato. A compostagem é um processo natural de decomposição da matéria orgânica, impulsionado por microrganismos na presença de oxigénio. Converte resíduos biodegradáveis, como restos de comida e detritos de jardim, num fertilizante natural conhecido como composto, que pode ser utilizado para enriquecer o solo.

E nunca deixar o estrume à superfície durante muito tempo, convidando as moscas a reproduzir-se. “É importante integrar o mais rapidamente possível o estrume no solo. Isto minimizaria muito a produção de moscas”, aconselha Salustiano Mato.

Certo é que o combate a problemas como estas explosões populacionais de moscas não pode ser pontual, destacou Benito Garcia Carril. "Tem de haver uma recuperação dos elementos ambientais e climáticos e, claro, das boas práticas agronómicas."