Willi Carlisle: country, brutalmente honesto e queer

Contra os piores instintos da música country, emerge um dos cantautores mais potentes dos últimos anos. Amores e amigos perdidos assombram Critterland: machadada final numa América que nunca existiu.

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Country queer? Ele só só quer “fazer música com honestidade” Madison Hurley
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São 11 da manhã no estado do Arkansas, cinco da tarde em Lisboa, e Willi Carlisle desfralda furiosamente uma pintura. Entre as pontas dos dedos, o músico revela Tragic Prelude por John Steuart Curry (1942), retrato do Kansas à beira da Guerra Civil Americana. “Este tipo de obra pretendia educar os populares que desconheciam a história da sua região. A arte folk pode ter uma utilidade pública”, defende, em videochamada com o Ípsilon. Hoje um dos mais icónicos murais dos EUA, foi à época abominado pela população do Kansas. A sede do governo, arrependida da encomenda, rejeitou-a.

Inspeccionamos o quadro, pixelizado pela câmara. Um tornado e um incêndio cercam o abolicionista John Brown: de boca escancarada, grita contra a escravatura; de braços estendidos, segura a Bíblia na mão esquerda e uma espingarda na direita. Eis que a capa de Critterland, terceiro álbum de Carlisle, passa a fazer muito mais sentido: revela-se uma homenagem a Tragic Prelude, trocando a figura de Brown pelo opossum (marsupial ou mamífero de bolsa, tal como o canguru). Essa criatura (critter) é a mascote do estado do Arkansas, a terra (land) do artista.

Carlisle contorce o rosto, numa expressão meio estupefacta, meio indignada. Sensível, mas também brutalmente honesto na abordagem, o cantautor vem percorrendo as muitas Américas contidas num só país-colosso: a profunda, a cosmopolita, a reprimida e a mitológica. O que o perturba neste momento? É que, em contrapeso à música, elogiada por nativos e forasteiros da country, a ilustração de capa (por Whit Stone) tem atraído pouca simpatia dos ouvintes – e, graças a uma pergunta nossa, Carlisle acaba de o saber. “Desculpa estar tão chocado”, solta, entre risos e um trago de Coca-Cola, “mas estou mesmo capaz de lhes oferecer porrada”.

Cada elemento gráfico é uma canção: uma carroça coberta, um motel, dólares em pleno ar, uma campa. Aqui são recordados os seres mais injustiçados; aqui repousam os corações na fila de espera para cicatrizarem, de onde talvez nunca cheguem a sair. Tudo bem: sofrer nunca será em vão, como o demonstra Critterland.

Por este monte acima

Chapéu de vaqueiro à cabeça, ganga ou flanela de alto a baixo, texanas nos pés. Uma flor bordada, um medalhão, um cinto com W de Willi inscrito na fivela de metal. Carlisle corrobora, grosso modo, o perfil que alguns identificam com fardos de palha e cantigas simplórias de amor – mas o olhar de navalha corta o engano.

Assim se apresentou num vídeo viral de 2020, filmado numa rua deserta de Nova Orleães. Mãos na guitarra e gaita nos beiços, cantava os seus dias de adolescente numa banda punk: rodeado de droga, saturado, mas incapaz de mudar, ao telefone com a mãe. Este é o estilo de história penetrante em que Carlisle se especializou – literalmente, dado o mestrado em poesia – e que domina Critterland, à excepção da faixa-título. “Nunca pensei amar assim, achar-me-ão um queer e um comunista”, brada aos céus nessa canção, mas, depois dessa erupção romântica e pastoral, esperam-nos os destroços.

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“Muita da mitologia a que chamamos ‘Americana’ é uma mentira. Somos maioritariamente pessoas normais e a country continua a ser música da classe trabalhadora.” A mensagem de Carlisle faz alguma falta na Europa: a disseminação transatlântica da country – incoerente, para não dizer aleatória – não sacode a desconfiança primária, não nos demove de soltar um yeehaw de troça.

Ainda assim, o cepticismo não é suficiente para anular o crescimento: brotam pela Inglaterra e pela Alemanha festivais country, e o género tem alcançado novos públicos via streaming. São frutos de uma globalização com um travo irónico, se pensarmos nas presunções sobre esse meio como um círculo puritano e chauvinista (mas já lá vamos). Por cá, country é principalmente um dos reclames do “cowboy português” Zé Amaro – cuja música vai lá beber, mais pelo cantil do sertanejo. Longe vão os anos 1970, quando este género tinha tempo de antena na Rádio Comercial com o locutor Jaime Fernandes, ou no jornal Se7e pela caneta de António Macedo.

Carlisle ainda não prevê concertos em Portugal, mas não é impossível. Em 2023, andou por Dinamarca, Noruega, Países Baixos, Inglaterra e Irlanda, oportunidades de confirmar a sua crença além-fronteiras: onde há terra, há sempre uma melodia popular como tecido conjuntivo. “Todas as culturas preservam uma tradição oral com raízes profundas, num mundo em que a globalização nos pode ter aproximado, ao passo que o neoliberalismo nos afastou. Somos isolados em unidades distintas, económicas ou culturais. Algo que nos une, enquanto povo, é o dever de lutar contra a enfadonha homogeneização de todas as coisas.”

E não é que, de repente, está a fazer as pazes com a resposta à capa de Critterland? “Na verdade, talvez até me deixe contente o facto de ser controverso. Quero ter a capacidade de enervar as pessoas, pelo menos um pouco.”

O ferrete de dois gumes

Se Willi Carlisle irritar alguém, considerem-no um acerto de contas: também ele tem quezílias, nomeadamente com a imposição de rótulos. Cantar sobre uma vida não heterossexual tem sido um teste à sua paciência, não por vergonha ou solidão (muito sucesso têm tido o “gay cowboy” Orville Peck e a drag queen Trixie Mattel). Apenas teme o rolo compressor da categorização, que pode aplainar uma obra com mais nuances, ao cuidado de todos os renegados da humanidade. “Peço sempre aos entrevistadores que o refiram, sei lá, em terceiro lugar… Não me ligam nenhuma.” Comprovou-o a Associated Press, uma das maiores agências noticiosas, ao cobrir o disco Peculiar, Missouri (2022): queer foi o primeiro adjectivo usado para o caracterizar.

Mais do que panfletária, a poesia de Carlisle é queer por filosofia: tanto no sentido original, que designava algo fora do normal, como no insulto atirado a pessoas LGBTI+, reivindicado como adjectivo provocador e radical. Um amor queer pode ser tão aborrecido como um amor hetero, mas o filtro da homofobia distorce essa noção, tornando-o anómalo a muitos olhos. É isso que convence Carlisle a lutar por uma capa cor-de-rosa em vez de castanha (aconteceu com o álbum anterior), ou a contar histórias e esconder nelas “um murro no estômago”.

“De vez em quando, vão chegar a alguém que é intolerante, e que pode deixar de o ser. Muitas pessoas no campo têm tido esse trabalho: traduzir para a sua família toda a experiência queer. Sabe Deus que ser gay em Lisboa é uma coisa, e sê-lo no Arkansas é outra completamente diferente… mas podes sempre ser a única pessoa queer que alguém conhece.” Tarefa ingrata, mas nobre, a de representar uma minoria indigesta numa comunidade fechada; ser visto como um híbrido, sendo que uma das partes pode não compreender a outra.

Critterland não está com paninhos quentes: a penúltima faixa abre com a confissão de quem conduziu 300 quilómetros por 15 centímetros “de amor”. Para o narrador, esta é só mais uma paragem imprudente num longo caminho de luto e remorsos, chorando a overdose acidental de uma alma gémea. O piano e a voz arrancam o brilhozinho dos olhos; o arranjo de cordas cava o vazio intransponível da perda. “Se queres compor uma boa canção, o risco deve ser alto, certo? Não queres apenas escrever sobre andar num supermercado, queres escrever sobre ter um ataque de pânico num supermercado”, ilustra, lembrando o monólogo arrepiante que deu título a Peculiar, Missouri.

Também mais dita do que cantada é The money grows on trees, epopeia de um traficante de droga, do império à queda. Tresloucado e tresnoitado, recusa o par de algemas: venha o saco mortuário.

Terra agreste por lavrar

O meio é propenso a desavenças: não há country sem polémica. Na década de 1970, Willie Nelson e Johnny Cash ajudaram a fixar o estilo fora-da-lei: ríspido como o rock e rítmico como o honky tonk, em afronta às polidas produções de Nashville. Hoje, impõe-se outro dilema: onde está a country autêntica? Nas odes a camiões, barris e botas, que engrossam as playlists das rádios, ou nas alternativas terra-a-terra, cruas e historiadas?

A par de Tyler Childers ou Sierra Ferrell, com quem tem partilhado palcos, Willi Carlisle está algures no segundo campo. O seu timbre é tão assombroso quanto o de Sturgill Simpson, que em 2014 deu o pontapé de saída para renovar a country independente: vozes que pedem reverência, sem pinga de altivez. “Colegas” pode, contudo, ser um exagero, visto que Simpson soma dois milhões de ouvintes por mês no Spotify, mais próximo de uma superestrela como Kacey Musgraves (27 milhões) do que Carlisle (70 mil).

“Enquanto conseguir vender um número saudável de bilhetes, neste e naquele lugarejo, só quero fazer música com honestidade”, pontifica. Embora Higher lonesome e Jaybird carreguem refrães de peito feito, verdejantes, é difícil imaginá-las na rádio: a primeira reflecte a solidão extrema; a segunda remexe a carta de suicídio de um amigo. “Acho que a música pop não está disponível para mim, sendo eu um cantor de folk. Woody Guthrie disse que a nossa função é reconfortar os perturbados e perturbar aqueles que estão confortáveis.”

Um ideal, reconhece-o, em contraciclo com a country territorial que tem triunfado. “O estereótipo tem alguma razão de ser: na América, muita [desta música] promove o nacionalismo violento. Qualquer tradição folk pode roçar esse perigo, se não tiver cuidado”, adverte Carlisle. Palavras que fazem lembrar as ex-Dixie Chicks, um dos grupos mais ouvidos até 2003, quando reprovaram George W. Bush pela invasão do Iraque; acumularam ameaças de morte e foram banidas das rádios country. O reparo de Carlisle continua a ter eco, na avassaladora popularidade dos músicos Jason Aldean, Oliver Anthony e Morgan Wallen: tiveram em 2023 alguns dos singles mais consumidos nos EUA, simultaneamente acusados de incitarem ao racismo e à violência armada.

Carlisle confronta tudo isto na vida de estrada. Alguma vez teve receio do que possa acontecer num concerto, falando de vidas queer a plateias conservadoras? “Tenho quase dois metros de altura e 130 quilos. Não tenho medo de ninguém e nunca deverei ter.” Willi continua pronto para a pancada, mas o seu espectáculo é uma forma de a dissuadir. “Há quem revire os olhos enquanto crio esse espaço em palco; afinal, o instinto humano mais básico é desconfiar de alguém diferente de nós. Acredito que estamos programados para isso, mas também para cantarmos e dançarmos juntos. A solução para não odiares os teus vizinhos é passares a conhecer os teus vizinhos.”

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Madison Hurley

Especialmente quando se tratam de aves raras, bichos-papões, ou outros seres desviantes. Two-headed calf, uma das canções em Critterland, adapta para acordeão um poema de Laura Gilpin, que aprendeu com pessoas trans: “Muitas tatuaram-no na sua carne, para memorializar o que significa nascer numa dupla condição.” Nessas quadras, Gilpin conta a história de um cordeiro de duas cabeças, nascido numa quinta: se os fazendeiros o apanharem, julgá-lo-ão defeituoso, e não verá a manhã seguinte – mas, por agora, está vivo, seguro no seio da sua mãe (e, no céu, há o dobro das estrelas).

Ao cantar a memória do cordeiro, Willi Carlisle canta-se a si próprio: faz o luto das aberrações que perdemos, e vinga as que estão para nascer.

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