Abrace, mas que seja por 20 segundos

De repente, ó jornalista criminosa, me senti bem espalhando uma meia-informação, um filho bastardo de algo lido na Internet e os meus adentros instintivos do bem.

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"O bonito do abraço é esse encontro de familiaridades ancestrais" folha de S. Paulo
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Não lembro onde é que eu li que o tempo áureo de um abraço é de 20 segundos. (Se alguém souber, me conta. Hoje, só hoje, eu decidi não procurar no Google.) Mas eu lembro, fresca como uma rosa esplendorosa, a sensação, a inundação reconfortante de um abraço bem dado. E recebido — porque, pelo menos no meu manual, não existe abraço sem reciprocidade.

Primeiro eu contei essa história dos 20 segundos para o meu parceiro. E, um pouco por toque, um pouco porque o amor é minha droga, como canta o Bryan Ferry ou o Gustavo Galo na bella "Nosso amor é uma droga", parceria com Peri Pane, e um pouco porque dava menos trabalho que retrucar, ele topou.

Ele estava indo para o trabalho, já com a mochila às costas e o olho na porta, e aquela pausa mais longa e deliberada que o distraído beijinho matinal lhe custou a alma, como se diz aqui nas Espanhas. Traduzido em linguagem corporal, e tudo em nome da pseudociência, o que sucedeu a seguir foi:

A hesitação mútua, o estranhamento; o gesto mecânico de braços envolvendo o corpo alheio; primeiro um, depois o outro, frouxos; ali pelo segundo seis (a gente estava contando em voz alta), pouco a pouco, começa a aflorar uma familiaridade, um calor, um bom humor, os braços se estreitam/ganham vida, os corpos se unificam, a gravidade da entrega forma uma árvore; na marca dos 15 segundos brota uma leve ansiedade, um risinho nervoso, chegamos aos 20 segundos e o desabraço custa uma ínfima parte de um segundo, como nascer, como a letargia depois do despertador; nos entreolhamos; o dia segue — um pouco diferente, um pouco mais cúmplice.

Depois, contei para uma amiga. Pensei que ela ia achar uma bobagem. Outro dia me escreveu: "A gente está provando em casa. E estou ensinando para os meus filhos."

De repente, ó jornalista criminosa, me senti bem espalhando uma meia-informação, um filho bastardo de algo lido na Internet e os meus adentros instintivos do bem.

Hoje de manhã, no lusco-fusco do quarto, quando meu parceiro, seguindo a liturgia de incontáveis manhãs, apoiou a mão na minha perna e eu busquei a testa dele com a minha (para fazer o download, como eu costumo dizer), algo naquela prosaica conexão me transmitiu mundos possíveis, ciclos naturais, o momento redentor da janela aberta e lufada de Verão gozoso.

Vulgo o simples prazer de estar, o prazer e a calma, o simples gosto-gozo de se conectar, integrar, enfim, o leitor já vai entendendo por onde eu vou, que entender isso tudo nós, humanus e gatus entendemos, e isso é o bonito do abraço, esse encontro de familiaridades ancestrais.

Na penumbra do meu quarto nasceu essa crónica. Da minha parte, nas minhas horas off vou continuar espalhando o boato dos 20 segundos — para além de estudos, oxitocinas, serotoninas e endorfinas e outras inas: a verdade indelével do abraço.

PS: Isso porque eu não vos falei do beijo de seis segundos!


Exclusivo PÚBLICO/Folha de S.Paulo
O PÚBLICO respeitou a composição do texto original, com excepção de algumas palavras ou expressões não usadas em português de Portugal.

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